Capítulo
Quinto
Da
caça da terra
Uma das coisas que sustenta e abasta muito os moradores desta
terra do Brasil é a muita caça que há nestes matos de muitos gêneros
e de diversas maneiras, a qual os mesmos índios da terra matam
assim com frechas como por indústria de seus laços
e fojos, onde costumam tomar a maior parte dela.
Há muitos veados e muita soma de porcos monteses de muitas
castas. Uns pequenos há na terra que têm as cerdas muito grossas,
ásperas e crespas; estes têm o umbigo nas costas, matam-se muitos
deles, e de outros grandes que não são desta qualidade. Há muitas
antas que quase são tamanhas como vacas e pastam ervas como outro
gado qualquer; sua carne tem o sabor como da vaca: a pele deste
animal é muito grossa e rija. Há também coelhos, mas têm as
orelhas de outra maneira mais pequenas e redondas. Há outros
animais maiores que lebres que se chamam pacas, também têm carne
muito sabrosa. Uns bichos há nesta terra que também se comem e se
têm pela melhor caça que há no mato.
Chamam-lhes tatus, são tamanhos como coelhos e têm um casco
à maneira de lagosta como de cágado, mas é repartido em muitas
juntas como lâminas; parecem totalmente um cavalo armado, têm um
rabo do mesmo casco comprido, o focinho é como de leitão, e não
botam mais fora do casco que a cabeça, têm as pernas baixas e
criam-se em covas, a carne deles tem o sabor quase como de galinha.
Esta caça é muito estimada na terra. Há também muitas galinhas
de mato que os índios matam com frechas, e outras muitas aves muito
gordas e sabrosas melhores que perdizes. Desta e de outra muita caça
há no Brasil muita abundância.
Capítulo
Sexto
Das
fruitas da terra
Uma fruita se dá nesta terra do Brasil muito sabrosa, e mais
prezada de quantas há. Cria-se numa planta humilde junto do chão,
a qual tem umas pencas como cardo, a fruita dela nasce como
alcachofras e parecem naturalmente pinhas, e são do mesmo tamanho,
chamam-lhe ananases, e depois de maduros têm um cheiro muito
excelente, colhem-nos como são de vez, e com uma faca tiram-lhes
aquela casca grossa e fazem-nos em talhadas e desta maneira se
comem, excedem no gosto a quantas fruitas há neste Reino, e fazem
todos tanto por esta fruita, que mandam plantar roças dela, como de
cardais: a este nosso Reino trazem muitos destes ananases em
conserva. Outra fruita se cria numas árvores grandes, estas se não
plantam, nascem pelo mato muitas; esta fruita depois de madura é
muito amarela: são como pêros repinaldos compridos, chamam-lhes
cajuis, têm muito sumo, e cria-se na ponta desta fruita de fora um
caroço como castanha, e nasce diante da mesma fruita, o qual tem
casca mais amargosa que fel, e se tocarem com ela nos beiços dura
muito aquele amargor e faz empolar toda a boca; pelo contrário este
caroço assado é muito mais gostoso que amêndoa; são de sua
natureza muito quentes em extremo. Há na terra tantos destes caroços
que os medem aos alqueires. Também há uma fruita que lhe chamam
bananas, e pela língua dos índios Pacovas: há na terra muita
abundância delas: parecem-se na feição com pepinos, nascem numas
árvores muito tenras e não são muito altas, nem têm ramos senão
folhas muito compridas e largas. Estas bananas criam-se em cachos,
algum se acha que tem de cento e cinqüenta para cima, e muitas
vezes é tão grande o peso delas que faz quebrar a árvore pelo
meio; como são de vez colhem estes cachos, e depois de colhidos
amadurecem, e tanto que estas árvores dão uma fruita, logo as
cortam porque não frutificam mais que a primeira vez, e tornam a
rebentar pelos pés outras novas. Esta é uma fruita muito sabrosa e
das boas que há na terra, tem uma pele como de figo, a qual lhes
lançam fora quando as querem comer e se come muitas delas fazem
dano à saúde e causam febre a quem se desmanda nelas. E assadas
maduras são muito sadias e mandam-se dar aos enfermos. Com esta
fruita se mantém a maior parte dos escravos desta terra, porque
assadas verdes passam por mantimento e quase têm sustância de pão.
Há duas qualidades desta fruita, umas são pequenas como figos
berjaçotes, as outras são maiores e compridas. Estas pequenas têm
dentro de si uma coisa estranha, a qual é que quando as cortam pelo
meio com uma faca ou por qualquer parte que seja acha-se nelas um
sinal à maneira de crucifixo, e assim totalmente o parecem. Também
há uma fruita que se chama bracases,
são como nêsperas, posto que comam muito não fazem mal à saúde.
Há muita pimenta da terra, come-se verde, queima muito em grande
maneira. Outras muitas fruitas há pelo mato dentro de diversas
qualidades, e são tantas que já se acharam pela terra dentro
algumas pessoas e sustentaram-se com elas muitos dias sem outro
mantimento algum. Estas que aqui escrevo são as que os portugueses
têm entre si em mais estima e as melhores da terra. Algumas fruitas
deste Reino se dão nestas partes, scilicet, muitos melões,
pepinos e figos de muitas castas, romãs, muitas parreiras que dão
uvas duas, três vezes no ano, e tanto que umas se acabam, começam
logo outras novamente. E desta maneira nunca está o Brasil sem
fruitas.
De
limões e laranjas há muita infinidade: dão-se muito na terra
estas árvores de espinho e multiplicam mais que as outras.
Capítulo
Sétimo
Da
condição e costumes dos índios da terra
Não se pode numerar nem compreender a
multidão de bárbaro gentio que semeou a natureza por toda esta
terra do Brasil; porque ninguém pode pelo sertão dentro caminhar
seguro, nem passar por terra onde não ache povoações de índios
armados contra todas as nações humanas, e assim como são muitos
permitiu Deus que fossem contrários uns dos outros, e que houvesse
entre eles grandes ódios e discórdias, porque se assim não fosse
os portugueses não poderiam viver na terra nem seria possível
conquistar tamanho poder de gente.
Havia
muitos destes índios pela Costa junto das Capitanias, tudo enfim
estava cheio deles quando começaram os portugueses a povoar a
terra; mas porque os mesmos índios se alevantaram contra eles e
faziam-lhes muitas traições, os governadores e capitães da terra
destruíram-nos pouco a pouco e mataram muitos deles, outros fugiram
para o sertão, e assim ficou a Costa despovoada de gentio ao longo
das Capitanias. Junto delas ficaram alguns índios destes nas
aldeias que são de paz, e amigos dos portugueses.
A
língua deste gentio toda pela Costa é, uma carece de três letras
–scilicet, não se acha nela F, nem L, nem R, coisa digna
de espanto, porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei; e desta
maneira vivem sem Justiça e desordenadamente.
Estes
índios andam nus sem cobertura alguma, assim machos como fêmeas; não
cobrem parte nenhuma de seu corpo, e trazem descoberto quanto a
natureza lhes deu. Vivem todos em aldeias, pode haver em cada uma
sete, oito casas, as quais são compridas feitas à maneira de
cordoarias; e cada uma delas está cheia de gente de uma parte e de
outra, e cada um por si tem sua estância e sua rede armada em que
dorme, e assim estão todos juntos uns dos outros por ordem, e pelo
meio da casa fica um caminho aberto para se servirem. Não há como
digo entre eles nenhum Rei, nem Justiça, somente em cada aldeia tem
um principal que é como capitão, ao qual obedecem por vontade e não
por força; morrendo este principal fica seu filho no mesmo lugar; não
serve de outra coisa senão de
ir com eles à guerra, e aconselhá-los como se hão de haver na
peleja, mas não castiga seus erros nem manda sobre eles coisa
alguma contra sua vontade. Este principal tem três, quatro
mulheres, a primeira tem em mais conta, e faz dela mais caso que das
outras. Isto tem por estado e por honra. Não adoram coisa alguma
nem têm para si que há na outra vida glória para os bons, e pena
para os maus, tudo cuidam que se acaba nesta e que as almas fenecem
com os corpos, e assim vivem bestialmente sem ter conta, nem peso,
nem medida.
Estes
índios são muito belicosos e têm sempre grandes guerras uns
contra os outros; nunca se acha neles paz nem é possível haver
entre eles amizade; porque umas nações pelejam contra outras e
matam-se muitos deles, e assim vai crescendo o ódio cada vez mais e
ficam imigos verdadeiros perpetuamente. As armas com que pelejam são
arcos e frechas; a coisa que apontarem não na erram, são muito
certos com esta arma e muito temidos na guerra, andam sempre nela
exercitados. E são muito inclinados a pelejar, e muito valentes e
esforçados contra seus adversários, e assim parece coisa entranha
ver dois, três mil homens nus de uma parte e de outra com grandes
assobios e grita frechando uns aos outros; e enquanto dura esta
peleja nunca estão com os corpos quedos meneando-se de uma parte
para outra com muita
ligeireza para que não
possam apontar nem fazer tiro em pessoa certa; algumas velhas
costumam apanhar-lhes as frechas pelo chão e servi-los enquanto
pelejam. Gente é esta muito atrevida e que teme muito pouco a
morte, e quando vão à guerra sempre lhes parece que têm certa a
vitória e que nenhum de sua companhia há de morrer. E quando
partem dizem, vamos matar: sem mais consideração, e não cuidam
que também podem ser vencidos. Não dão vida a nenhum cativo,
todos matam e comem, enfim que suas guerras são muito perigosas, e
devem-se ter em muita conta porque uma das coisas que desbaratou
muitos portugueses foi a pouca estima em que tinham a guerra dos índios,
e o pouco caso que faziam deles, e assim morreram muitos
miseravelmente por não se aperceberem como convinha; destes houve
muitas mortes desastradas: e isto acontece a cada passo nestas
partes.
Quando estes índios tomam alguns contrários, se logo com
aquele ímpeto os não matam, levam-nos vivos para suas aldeias (ou
sejam portugueses ou quaisquer outros índios seus imigos), e tanto
que chegam a suas casas lançam uma corda muito grossa ao pescoço
do cativo para que não possa fugir, e armam-lhe uma rede em que
durma e dão-lhe uma índia moça, a mais fermosa e honrada que há
na aldeia, para que durma com ele, e também tenha cuidado
de o guardar, e não vai para parte que não no acompanhe.
Esta índia tem cargo de lhe dar muito bem de comer e beber; e
depois de o terem desta maneira cinco ou seis meses ou o tempo que
querem, determinam de o matar, e fazem grandes cerimônias e festas
aqueles dias, e aparelham muitos vinhos para se embebedarem, e
fazem-nos da raiz de uma erva que se chama aipim, a qual fervem
primeiro e depois de cozida mastigam-na umas moças virgens e,
espremem-na nuns potes grandes, e dali a três ou quatro dias o
bebem. E o dia que hão de matar este cativo, pela manhã se alguma
ribeira está junto da aldeia levam-no a banhar nela com grandes
cantares e folias, e tanto que chegam com ele à aldeia, atam-no
pela cinta com quatro cordas cada uma para sua parte, e três,
quatro índios pegados em cada ponta destas e assim o levam ao meio
de um terreiro, e tiram tanto por estas cordas que não se possa
bulir para uma parte nem para outra, as mãos lhe deixam soltas
porque folgam de o ver defender com elas. Aquele que o há de matar
empena-se primeiro com penas de papagaio de muitas cores por todo o
corpo: há de ser este matador o mais valente da terra, e mais
honrado. Traz na mão uma espada de um pau muito duro e pesado com
que costumam de matar, e chega-se ao padecente dizendo-lhe muitas
coisas e ameaçando-lhe sua geração que o mesmo há de fazer a
seus parentes; e depois de o ter afrontado com muitas palavras
injuriosas, dá-lhe uma grande pancada na cabeça, e logo da
primeira o mata e lhe fazem pedaços. Está uma índia velha com um
cabaço na mão, e assim como ele cai acode muito depressa com ele a
meter-lho na cabeça para tomar os miolos e o sangue: tudo enfim
cozem e assam, e não fica dele coisa que não comam. Isto é mais
por vingança e por ódio que por se fartarem. Depois que comem a
carne destes contrários ficam nos ódios confirmados, e sentem
muito esta injúria, e por isso andam sempre a vingar-se uns contra
os outros. E se a moça
que dormia com o cativo fica prenhe, aquela criança, que pariu
depois de criada, matam-na e comem-na
e dizem que aquela menina ou menino era seu contrário
verdadeiro, e por isso estimam muito comer-lhe a carne e vingar-se
dele. E porque a mãe sabe o fim que hão de dar a esta criança,
muitas vezes quando se sente prenhe mata-a dentro da barriga e faz
com que morra. E acontece algumas vezes afeiçoar-se tanto a este
cativo e tomar-lhe tanto amor que foge com ele para sua terra para o
livrar da morte. E assim alguns portugueses há que desta maneira
escaparam e estão hoje em dia vivos; e muitos índios que do mesmo
modo se salvaram, ainda que são alguns tão brutos que não querem
fugir depois de os terem presos; porque houve algum que
estava já no terreno atado para padecer e davam-lhe a vida e
não quis senão que o matassem, dizendo que seus parentes o não
teriam por valente, e que todos correriam com ele; e daqui vem não
estimarem a morte; e quando chega aquela hora não na terem em conta
nem mostrarem nenhuma tristeza naquele passo.
Finalmente
que são estes índios muito desumanos e cruéis, não se movem a
nenhuma piedade: vivem como brutos animais sem ordem nem concerto de
homens, são muito desonestos e dados à sensualidade e entregam-se
aos vícios como se neles não houvera razão de humanos, ainda que
todavia sempre têm resguardo os machos e as fêmeas em seu
ajuntamento, e mostram ter nisto alguma vergonha. Todos comem carne
humana e têm-na pela melhor iguaria de quantas pode haver: não de
seus amigos com quem eles têm paz senão dos contrários. Tem esta
qualidade estes índios que de qualquer coisa que comam por pequena
que seja hão de convidar com ela quantos estiverem presentes, só
esta proximidade se acha entre eles. Comem de quantos bichos se
criam na terra, outro nenhum enjeitam
por peçonhento que seja, somente aranha.
Têm
estes índios machos por costume arrancar toda a barba e não
consentem nenhum cabelo em parte alguma de seu corpo, salvo na cabeça,
ainda que arredor dela por baixo tudo arrancam. As fêmeas presam-se
muito de seus cabelos e trazem-nos muito compridos e penteados e as
mais delas enastrados.
Os
machos costumam trazer o beiço furado e uma pedra no buraco metida
por galantaria; outros há que trazem o rosto todo cheio de buracos
e assim parecem muito feios e disformes: isto lhes fazem quando são
meninos. Também alguns índios andam pintados por todo o corpo,
pelo qual fazem uns riscos escritos na carne: isto não traz senão
quem tem feito alguma valentia. E assim também machos como fêmeas
costumam tingir-se com sumo de uma fruita que se chama jenipapo, que
é verde quando se pisa e depois que põe no corpo e se enxuga fico
muito negro e por muito que se lave não se tira senão aos nove
dias: isto tudo fazem por galantaria.
Estas
índias guardam castidade a seus maridos e são muito suas amigas,
porque também eles sofrem mal adultérios; casam
os mais deles com suas sobrinhas, filhas de seus irmãos ou
irmãs, estas são suas mulheres verdadeiras, e não lhas podem
negar seus pais.
Algumas
índias se acham nestas partes que juram e prometem castidade, e
assim não casam nem conhecem homem algum de nenhuma qualidade, nem
no consentiram ainda que por isso as matem. Estas deixam todo o
exercício de mulheres e imitam os homens e seguem seus ofícios
como se não fossem mulheres, e cortam seus cabelos da mesma maneira
que os machos trazem, e vão à guerra com seu arco e frechas e à
caça: enfim que andam sempre na companhia dos homens, e cada uma
tem mulher que a serve e que lhe faz de comer como se fossem
casados.
Estes índios vivem muito descansados, não têm cuidado de
coisa alguma senão de comer e beber e matar gente; e por isso são
muito gordos em extremo; e assim também com qualquer desgosto
emagrecem muito; e como se agastam de qualquer coisa, comem terra e
desta maneira morrem muitos deles bestialmente. Todos seguem muito o
conselho das velhas, tudo o que elas lhes dizem fazem e têm-no por
muito certo: daqui vem a muitos moradores não comprarem nenhumas
por lhes não fazerem fugir seus escravos.
Quando
estas índias parem, a primeira coisa que fazem depois do parto
lavam-se todas num ribeiro e ficam tão bem-dispostas como se não
pariram; em lugar delas se deitam seus maridos nas redes, e assim os
visitam e curam como se eles fossem os paridos.
Quando
algum destes índios morre costumam enterrá-lo numa cova assentado
sobre os pés, com sua rede às costas em que ele dormia, e logo
pelos primeiros dias põem-lhe de comer em cima da cova. Outras
muitas bestialidades usam estes índios que aqui não escrevo,
porque minha tenção foi não ser comprido, e passar tudo isto com
brevidade.
Dos
resgates
Estes índios não possuem nenhuma fazenda, nem procuram
adquiri-la como os outros homens, somente cobiçam muito algumas
coisas que são deste Reino – scilicet, camisas, pelotes,
ferramentas e outras coisas que eles têm em muita estima e desejam
muito alcançar dos portugueses. A troco disto se vendiam uns aos
outros, e os portugueses resgatavam muitos deles e salteavam quantos
queriam sem ninguém lhes ir à mão, mas já agora não há isto na
terra nem resgates como soía, porque depois que os padres da
Companhia vieram a estas partes proveram neste negócio e vedaram
muitos saltos que faziam os portugueses
por esta Costa, os quais encarregavam muito suas consciências
com cativarem muitos índios contra direito e moverem-lhes
guerras injustas. E por isso ordenaram os padres e fizeram com os
Capitães da terra que não houvesse mais resgates nem consentissem
que fosse nenhum português a suas aldeias sem licença do mesmo
Capitão. E quantos escravos agora vêm novamente do sertão ou das
outras Capitanias, todos levam primeiro à Alfândega e alí os
examinam e lhes fazem perguntas quem os vendeu, ou como foram
resgatados, porque ninguém os pode vender senão seus pais ou
aqueles que em justa guerra os cativam, e os que acham mal
adquiridos põem-nos em sua liberdade, e desta maneira quantos índios
se compram são bem resgatados, e os moradores da terra não deixam
por isso de ir muito avante com suas fazendas.
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