Saiu
um homem do esquife de Bartolomeu Dias e andava entre eles, sem
implicarem nada com ele para fazer-lhe mal. Antes lhe davam cabaças
de água, e acenavam aos do esquife que saíssem em terra.
Com
isto se volveu Bartolomeu Dias ao Capitão; e viemo-nos às naus, a
comer, tangendo gaitas e trombetas, sem lhes dar mais opressão. E
eles tornaram-se a assentar na praia e assim por então ficaram.
Neste
ilhéu, onde fomos ouvir missa e pregação, a água espraia muito,
deixando muita areia e muito cascalho a descoberto. Enquanto aí estávamos,
foram alguns buscar marisco e apenas acharam alguns camarões
grossos e curtos, entre os quais vinha um tão grande e tão grosso,
como em nenhum tempo vi
tamanho. Também acharam cascas de berbigões e amêijoas, mas não
toparam com nenhuma peça inteira.
E
tanto que comemos, vieram logo todos os capitães a esta nau, por
ordem do Capitão-mor, com os quais ele se apartou, e eu na
companhia. E perguntou a todos se nos parecia bem mandar a nova do
achamento desta terra a Vossa Alteza pelo navio dos mantimentos,
para a melhor a mandar descobrir e saber dela mais do que nós agora
podíamos saber, por irmos de nossa viagem.
E
entre muitas falas que no caso se fizeram, foi por todos ou a maior
parte dito que seria muito bem. E nisto concluíram.
E tanto que a conclusão foi tomada, perguntou mais se lhes
parecia bem tomar aqui por força um par destes homens para os
mandar a Vossa Alteza, deixando aqui por eles outros dois destes
degredados.
Sobre
isto acordaram que não era necessário tomar por força homens,
porque era geral costume dos que assim levavam por força para
alguma parte dizerem que há ali de tudo quanto lhes perguntam; e
que melhor e muito melhor informação da terra dariam dois homens
destes degredados que aqui deixassem, do que eles dariam se os
levassem, por ser gente que ninguém entende. Nem eles tão cedo
aprenderiam a falar para o saberem tão bem dizer que muito melhor
estoutros o não digam, quando Vossa Alteza cá mandar.
E
que, portanto, não cuidassem de aqui tomar ninguém por força nem
de fazer escândalo, para de todo mais os amansar e apacificar, senão
somente deixar aqui os dois degredados, quando daqui partíssemos.
E
assim, por melhor a todos parecer, ficou determinado.
Acabado
isto, disse o Capitão que fôssemos nos batéis em terra e
ver-se-ia bem como era o rio, e também para folgarmos.
Fomos
todos nos batéis em terra, armados e a bandeira conosco. Eles
andavam ali na praia, à boca do rio, para onde nós íamos; e,
antes que chegássemos, pelo ensino que dantes tinham, puseram todos
os arcos, e acenavam que saíssemos. Mas, tanto que os batéis
puseram as proas em terra, passaram-se logo todos além do rio, o
qual não é mais largo que um jogo de mancal. E mal desembarcamos,
alguns dos nossos passaram logo o rio, e meteram-se entre eles.
Alguns aguardavam; outros afastavam-se. Era, porém, a coisa de
maneira que todos andavam misturados. Eles ofereciam desses arcos
com suas setas por sombreiros e carapuças de linho ou por qualquer
coisa que lhes davam.
Passaram
além tantos dos nossos, e andavam assim misturados com eles, que
eles se esquivavam e afastavam-se. E deles alguns iam-se para cima
onde outros estavam.
Então
o Capitão fez que dois homens o tomassem ao colo, passou o rio, e
fez tornar a todos.
A
gente que ali estava não seria mais que a costumada. E tanto que o
Capitão fez tornar a todos, vieram a ele alguns daqueles, não
porque o conhecessem por Senhor, pois me parece que não entendem,
nem tomavam disso conhecimento, mas porque a gente nossa passava já
para aquém do rio.
Ali
falavam e traziam muitos arcos e continhas daquelas já ditas, e
resgatavam-nas por qualquer coisa, em tal maneira que os nossos
trouxeram dali para as naus muitos arcos e setas e contas.
Então
tornou-se o Capitão aquém do rio, e logo
acudiram muitos à beira dele.
Ali
veríeis galantes, pintados de preto e vermelho, e quartejados,
assim nos corpos, como nas pernas, que, certo, pareciam bem assim.
Também
andavam, entre eles, quatro ou cinco mulheres moças, nuas como
eles, que não pareciam mal. Entre elas andava uma com uma coxa, do
joelho até o quadril, e a nádega, toda tinta daquela tintura
preta; e o resto, tudo da sua própria cor. Outra trazia ambos os
joelhos, com as curvas assim tintas, e também os colos dos pés; e
suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência descobertas, que
nisso não havia nenhuma vergonha.
Também
andava aí outra mulher moça com um menino ou menina ao colo, atado
com um pano (não sei de quê) aos peitos, de modo que apenas as
perninhas lhe apareciam. Mas as pernas da mãe e o resto não
traziam pano algum.
Depois
andou o Capitão para cima ao longo do rio, que corre sempre chegado
à praia. Ali esperou
um velho, que trazia na mão uma pá de almadia. Falava, enquanto o
Capitão esteve com ele, perante nós todos, sem nunca ninguém o
entender, nem ele a nós quantas coisas que lhe demandávamos acerca
de ouro, que nós desejávamos saber se na terra havia.
Trazia
este velho o beiço tão furado, que lhe caberia pelo furo um grande
dedo polegar, e metida nele uma pedra verde, ruim, que cerrava por
fora esse buraco. O Capitão lha fez tirar. E ele não sei que diabo
falava e ia com ela direito ao Capitão, para lha meter na boca.
Estivemos sobre isso rindo um pouco; e então enfadou-se o Capitão
e deixou-o. E um dos nossos deu-lhe pela pedra um sombreiro velho, não
por ela valer alguma coisa, mas por amostra. Depois houve-a o Capitão,
segundo creio, para, com
as outras coisas, a mandar a Vossa Alteza.
Andamos
por aí vendo a ribeira, a qual é de muita água e muito boa. Ao
longo dela há muitas palmas, não muito altas, em que há muito
bons palmitos. Colhemos e comemos deles muitos.
Então
tornou-se o Capitão para baixo para a boca do rio, onde havíamos
desembarcado.
Além
do rio, andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante dos
outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então
além do rio Diogo Dias, almoxarife que foi de Sacavém, que é
homem gracioso e de prazer; e levou consigo um gaiteiro nosso com
sua gaita. E meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos; e
eles folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao som da gaita.
Depois de dançarem, fez-lhes ali, andando no chão, muitas voltas
ligeiras, e salto real, de que eles se espantavam e riam e folgavam
muito. E conquanto com aquilo muito os segurou e afagou, tomavam
logo uma esquiveza como de animais monteses, e foram-se para cima.
E
então o Capitão passou o rio com todos nós outros, e fomos pela
praia de longo, indo os batéis, assim, rente da terra. Fomos até
uma lagoa grande de água doce, que está junto com a praia, porque
toda aquela ribeira do mar é apaulada por cima e sai a água por
muitos lugares.
E
depois de passarmos o rio, foram uns sete ou oito deles andar entre
os marinheiros que se recolhiam aos batéis. E levaram dali um tubarão,
que Bartolomeu Dias matou, lhes levou e lançou na praia.
Bastará
dizer-vos que até aqui, como quer que eles um pouco se amansassem,
logo duma mão para outra se esquivavam, como pardais, do cevadoiro.
Homem não lhes ousa falar de rijo para não se esquivarem mais; e
tudo se passa como eles querem, para os bem amansar.
O
Capitão ao velho, com quem falou, deu uma carapuça vermelha. E com
toda a fala que entre ambos se passou e com a carapuça que lhe deu,
tanto que se apartou e começou de passar o rio, foi-se logo
recatando e não quis mais tornar de lá para aquém.
Os
outros dois, que o Capitão teve nas naus, a que deu o que já
disse, nunca mais aqui apareceram – do que tiro ser gente bestial,
de pouco saber e por isso tão esquiva. Porém e com tudo isso andam
muito bem curados e muito limpos. E naquilo me parece ainda mais que
são como aves ou alimárias monteses, às quais faz o ar melhor
pena e melhor cabelo que às mansas, porque os corpos seus são tão
limpos, tão gordos e tão formosos, que não pode mais ser. |