Isto
me faz presumir que não têm casas nem moradas a que se acolham, e
o ar, a que se criam, os faz tais. Nem nós ainda até agora vimos
nenhuma casa ou maneira delas.
Mandou
o Capitão aquele degredado Afonso Ribeiro, que se fosse outra vez
com eles. Ele foi e andou lá um bom pedaço, mas à tarde
tornou-se, que o fizeram eles vir e não o quiseram lá consentir. E
deram-lhe arcos e setas; e não lhe tomaram nenhuma coisa do seu.
Antes – disse ele – que um lhe tomara umas continhas amarelas,
que levava, e fugia com elas, e ele se queixou e os outros foram
logo após, e lhas tomaram e tornaram-lhas a dar; e então
mandaram-no vir. Disse que não vira lá entre eles senão umas
choupaninhas de rama verde e de fetos muito grandes, como de Entre
Douro e Minho.
E
assim nos tornamos às naus, já quase noite, a dormir.
À
segunda-feira, depois de comer, saímos todos em terra a tomar água.
Ali vieram então muitos, mas não tantos como as outras vezes. Já
muito poucos traziam arcos. Estiveram assim um pouco afastados de nós;
e depois pouco a pouco misturaram-se conosco. Abraçavam-nos e
folgavam. E alguns deles se esquivavam logo. Ali davam alguns arcos
por folhas de papel e por alguma carapucinha velha ou por qualquer
coisa. Em tal maneira isto se passou, que bem vinte ou trinta
pessoas das nossas se foram com eles, onde outros muitos estavam com
moças e mulheres. E trouxeram de lá muitos arcos e barretes de
penas de aves, deles verdes e deles amarelos, dos quais, creio, o
Capitão há de mandar amostra a Vossa Alteza.
E,
segundo diziam esses que lá foram, folgavam com eles. Neste dia os
vimos mais de perto e mais à nossa vontade, por andarmos quase
todos misturados. Ali, alguns andavam daquelas tinturas quartejados;
outros de metades; outros de tanta feição, como em panos de armar,
e todos com os beiços furados, e muitos com os ossos neles, e
outros sem ossos.
Alguns
traziam uns ouriços verdes, de árvores, que, na cor, queriam
parecer de castanheiros, embora mais pequenos. E eram cheios duns grãos
vermelhos pequenos, que, esmagando-os entre os dedos, faziam tintura
muito vermelha, de que eles andavam tintos. E quanto mais se
molhavam, tanto mais vermelhos ficavam.
Todos
andam rapados até cima das orelhas; e assim as sobrancelhas e
pestanas.
Trazem
todos as testas, de fonte a fonte, tintas da tintura preta, que
parece uma fita preta, da largura de dois dedos.
E
o Capitão mandou aquele degredado Afonso Ribeiro e a outros dois
degredados, que fossem lá andar entre eles; e assim a Diogo Dias,
por ser homem ledo, com que eles folgavam. Aos degredados mandou que
ficassem lá esta noite.
Foram-se
lá todos, e andaram entre eles. E, segundo eles diziam, foram bem
uma légua e meia a uma povoação, em que haveria nove ou dez
casas, as quais eram tão compridas, cada uma, como esta nau capitânia.
Eram de madeira, e das ilhargas de tábuas, e cobertas de palha, de
razoada altura; todas duma só peça, sem nenhum repartimento,
tinham dentro muitos esteios; e, de esteio a esteio, uma rede atada
pelos cabos, alta, em que dormiam. Debaixo, para se aquentarem,
faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas, uma num
cabo, e outra no outro.
Diziam
que em cada casa se recolhiam trinta ou quarenta pessoas, e que
assim os achavam; e que lhes davam de comer daquela vianda, que eles
tinham, a saber, muito inhame e outras sementes, que na terra há e
eles comem. Mas, quando se fez tarde fizeram-nos logo tornar a todos
e não quiseram que lá ficasse nenhum. Ainda, segundo diziam,
queriam vir com eles.
Resgataram
lá por cascavéis e por outras coisinhas de pouco valor, que
levavam, papagaios vermelhos, muito grandes e formosos, e dois
verdes pequeninos e carapuças de penas verdes, e um pano de penas
de muitas cores, maneira de tecido assaz formoso, segundo Vossa
Alteza todas estas coisas verá, porque o Capitão vo-las há de
mandar, segundo ele disse.
E
com isto vieram; e nós tornámo-nos às naus.
À
terça-feira, depois de comer, fomos em terra dar guarda de lenha e
lavar roupa.
Estavam
na praia, quando chegamos, obra de sessenta ou setenta sem arcos e
sem nada. Tanto que chegamos, vieram logo para nós, sem se
esquivarem. Depois acudiram muitos, que seriam bem duzentos, todos
sem arcos; e misturaram-se todos tanto conosco que alguns nos
ajudavam a acarretar lenha e a meter nos batéis. E lutavam com os
nossos e tomavam muito prazer.
Enquanto
cortávamos a lenha, faziam dois carpinteiros uma grande Cruz, dum
pau, que ontem para isso se cortou.
Muitos
deles vinham ali estar com os carpinteiros. E creio que o faziam
mais por verem a ferramenta de ferro com que a faziam, do que por
verem a Cruz, porque eles não tem coisa que de ferro seja, e cortam
sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas, metidas em um pau
entre duas talas, mui bem atadas e por tal maneira que andam fortes,
segundo diziam os homens, que ontem a suas casas foram,
porque lhas viram lá.
Era
já a conversação deles conosco tanta, que quase nos estorvavam no
que havíamos de fazer.
O
Capitão mandou a dois degredados e a Diogo Dias que fossem lá à
aldeia (e aoutras, se houvessem novas delas) e que, em toda a
maneira, não viessem dormir às naus, ainda que eles os mandassem.
E assim se foram.
Enquanto
andávamos nessa mata a cortar lenha, atravessavam alguns papagaios
por essas árvores, deles verdes e outros pardos, grandes e
pequenos, de maneira que me parece que haverá muitos nesta terra.
Porém eu não veria mais que até nove ou dez. Outras aves então não
vimos, somente algumas pombas-seixas, e pareceram-me bastante
maiores que as de Portugal. Alguns diziam que viram rolas; eu não
as vi. Mas, segundo os arvoredos são mui muitos e grandes, e de
infindas maneiras, não duvido que por esse sertão haja muitas
aves!
Cerca
da noite nos volvemos para as naus com nossa lenha.
Eu
creio, Senhor, que ainda não dei conta aqui a Vossa Alteza da feição
de seus arcos e setas. Os arcos são pretos e compridos, as setas
também compridas e os ferros delas de canas aparadas, segundo Vossa
Alteza verá por alguns que – eu creio – o Capitão a Ela há de
enviar.
À
quarta-feira não fomos em terra, porque o Capitão andou todo o dia
no navio dos mantimentos a despejá-lo e fazer levar às naus isso
que cada uma podia levar. Eles acudiram à praia; muitos, segundo
das naus vimos. No dizer de Sancho de Tovar, que lá foi, seriam
obra de trezentos.
Diogo
Dias e Afonso Ribeiro, o degredado, aos quais o Capitão ontem
mandou que em toda maneira lá dormissem, volveram-se, já de noite,
por eles não quererem que lá ficassem. Trouxeram papagaios verdes
e outras aves pretas, quase como pegas, a não ser que tinham o bico
branco e os rabos curtos.
Quando
Sancho de Tovar se recolheu à nau, queriam vir com ele alguns, mas
ele não quis senão dois mancebos dispostos e homens de prol.
Mandou-os essa noite mui bem pensar e curar. Comeram toda a vianda
que lhes deram; e mandou fazer-lhes cama de lençóis, segundo ele
disse. Dormiram e folgaram aquela noite.
E
assim não houve mais este dia que para escrever seja.
À
quinta-feira, derradeiro de abril, comemos logo, quase pela manhã,
e fomos em terra por mais lenha e água. E, em querendo o Capitão
sair desta nau, chegou Sancho de Tovar com seus dois hóspedes. E
por ele ainda não ter comido, puseram-lhe toalhas. Trouxeram-lhe
vianda e comeu. Aos hóspedes, sentaram cada um em sua cadeira. E de
tudo o que lhes deram comeram mui bem, especialmente lacão cozido,
frio, e arroz.
Não
lhes deram vinho, por Sancho de Tovar dizer que o não bebiam bem.
Acabado
o comer, metemo-nos todos no batel e eles conosco. Deu um grumete a
um deles uma armadura grande de porco montês, bem revolta. Tanto
que a tomou, meteu-a logo no beiço, e, porque se lhe não queria
segurar, deram-lhe uma pequena de cera vermelha. E ele ajeitou-lhe
seu adereço detrás para ficar segura, e meteu-a no beiço, assim
revolta para cima. E vinha tão contente com ela, como se tivesse
uma grande jóia. E tanto que saímos em terra, foi-se logo com ela,
e não apareceu mais aí.
Andariam
na praia, quando saímos, oito ou dez deles; e de aí a pouco começaram
a vir mais. E parece-me que viriam, este dia, à praia quatrocentos
ou quatrocentos e cinqüenta.
Traziam
alguns deles arcos e setas, que todos trocaram por carapuças ou por
qualquer coisa que lhes davam. Comiam conosco do que lhes dávamos.
Bebiam alguns deles vinho; outros o não podiam beber. Mas
parece-me, que se lho avezarem, o beberão de boa vontade.
Andavam
todos tão dispostos, tão bem-feitos e galantes com suas tinturas,
que pareciam bem. Acarretavam dessa lenha, quanta podiam, com mui
boa vontade, e levavam-na aos batéis.
Andavam
já mais mansos e seguros entre nós, do que nós andávamos entre
eles.
Foi
o Capitão com alguns de nós um pedaço por este arvoredo até uma
ribeira grande e de muita água que, a nosso parecer, era esta
mesma, que vem ter à praia, e em que nós tomamos água.
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