Deram-lhes
ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel e figos
passados. Não quiseram comer quase nada daquilo; e, se alguma coisa
provaram, logo a lançaram fora.
Trouxeram-lhes
vinho numa taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram nada, nem
quiseram mais. Trouxeram-lhes a água em uma albarrada. Não
beberam. Mal a tomaram na boca, que lavaram, e logo a lançaram
fora.
Viu
um deles umas contas de rosário, brancas; acenou que lhas dessem,
folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço. Depois tirou-as e
enrolou-as no braço e acenava para a terra e de novo para as contas
e para o colar do Capitão, como dizendo que dariam ouro por aquilo.
Isto
tomávamos nós assim por assim o desejarmos. Mas se ele queria
dizer que levaria as contas e mais o colar, isto não o queríamos nós
entender, porque não lho havíamos de dar. E depois tornou as
contas a quem lhas dera.
Então
estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir, sem buscarem maneira
de cobrirem suas vergonhas, as quais não eram fanadas; e as
cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas. O Capitão lhes
mandou pôr por baixo das cabeças seus coxins; e o da cabeleira
esforçava-se por não a quebrar. E lançaram-lhes um manto por
cima; e eles consentiram, quedaram-se e dormiram.
Ao
sábado pela manhã mandou o Capitão fazer vela, e fomos demandar a
entrada, a qual era mui larga e alta de seis a sete braças.
Entraram todas as naus dentro; e ancoraram em cinco ou seis braças
– ancoragem dentro tão grande, tão formosa e tão segura, que
podem abrigar-se nela mais de duzentos navios e naus. E tanto que as
naus quedaram ancoradas, todos os capitães vieram a esta nau do
Capitão-mor. E daqui mandou o Capitão a Nicolau Coelho e
Bartolomeu Dias que fossem em terra e levassem aqueles dois homens e
os deixassem ir com seu arco e setas, e isto depois que fez dar a
cada um sua camisa nova, sua carapuça vermelha e um rosário de
contas brancas de osso, que eles levaram nos braços, seus cascavéis
e suas campainhas. E mandou com eles, para lá ficar, um mancebo
degredado, criado de D. João Telo, a que chamam Afonso Ribeiro,
para lá andar com eles e saber de seu viver e maneiras. E a mim
mandou que fosse com Nicolau Coelho.
Fomos
assim de frecha direitos à praia. Ali acudiram logo obra de
duzentos homens, todos nus, e com arcos e setas nas mãos. Aqueles
que nós levávamos acenaram-lhes que se afastassem e pousassem os
arcos; e eles os pousaram, mas não se afastaram muito. E mal
pousaram os arcos, logo saíram os que nós levávamos, e o mancebo
degredado com eles. E saídos não pararam mais; nem esperavam um
pelo outro, mas antes corriam a quem mais corria. E passaram um rio
que por ali corre, de água doce, de muita água que lhes dava pela
braga; e outros muitos com eles. E foram assim correndo, além do
rio, entre umas moitas de palmas onde estavam outros. Ali pararam.
Entretanto foi-se o degredado com um homem que, logo ao sair do
batel, o agasalhou e o levou até lá. Mas logo tornaram a nós; e
com ele vieram os outros que nós leváramos, os quais vinham já
nus e sem carapuças.
Então
se começaram de chegar muitos. Entravam pela beira do mar para os
batéis, até que mais não podiam; traziam cabaços de água, e
tomavam alguns barris que nós levávamos: enchiam-nos de água e
traziam-nos aos batéis. Não que eles de todos chegassem à borda
do batel. Mas junto a ele, lançavam os barris que nós tomávamos;
e pediam que lhes dessem alguma coisa. Levava Nicolau Coelho cascavéis
e manilhas. E a uns dava um cascavel, a outros uma manilha, de
maneira que com aquele engodo quase nos queriam dar a mão.
Davam-nos daqueles arcos e setas por sombreiros e carapuças de
linho ou por qualquer coisa que homem lhes queria dar.
Dali
se partiram os outros dois mancebos, que os não vimos mais.
Muitos
deles ou quase a maior parte dos que andavam ali traziam aqueles
bicos de osso nos beiços. E alguns, que andavam sem eles, tinham os
beiços furados e nos buracos uns espelhos de pau, que pareciam
espelhos de borracha; outros traziam três daqueles bicos, a saber,
um no meio e os dois nos cabos. Aí andavam outros, quartejados de
cores, a saber, metade deles da sua própria cor, e metade de
tintura preta, a modos de azulada; e outros quartejados de escaques.
Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem
gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas espáduas, e suas
vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras
que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha.
Ali
por então não houve mais fala ou entendimento com eles, por a
barbaria deles ser tamanha, que se não entendia nem ouvia ninguém.
Acenamos-lhes
que se fossem; assim o fizeram e passaram-se além do rio. Saíram
três ou quatro homens nossos dos batéis, e encheram não sei
quantos barris de água que nós levávamos e tornamo-nos às naus.
Mas quando assim vínhamos, acenaram-nos que tornássemos. Tornamos
e eles mandaram o degredado e não quiseram que ficasse lá com
eles. Este levava uma bacia pequena e duas ou três carapuças
vermelhas para lá as dar ao senhor, se o lá houvesse. Não
cuidaram de lhe tomar nada, antes o mandaram com tudo. Mas então
Bartolomeu Dias o fez outra vez tornar, ordenando que lhes desse
aquilo. E ele tornou e o deu, à vista de nós, àquele que da
primeira vez agasalhara. Logo voltou e nós trouxemo-lo.
Esse
que o agasalhou era já de idade, e andava por louçainha todo cheio
de penas, pegadas pelo corpo, que parecia asseteado como S. Sebastião.
Outros traziam carapuças de penas amarelas; outros, de vermelhas; e
outros de verdes. E uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a
cima daquela tintura; e certo era tão bem-feita e tão redonda, e
sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas
mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha,
por não terem a sua como ela. Nenhum deles era fanado, mas, todos
assim como nós. E com isto nos tornamos e eles foram-se.
À
tarde saiu o Capitão-mor em seu batel com todos nós outros e com
os outros capitães das naus em seus batéis a folgar pela baía, em
frente da praia. Mas ninguém saiu em terra, porque o Capitão o não
quis, sem embargo de ninguém nela estar. Somente saiu -- ele com
todos nós -- em um ilhéu grande, que na baía está e que na
baixa-mar fica mui vazio. Porém é por toda a parte cercado de água,
de sorte que ninguém lá pode ir, a não ser de barco ou a nado.
Ali folgou ele e todos nós outros, bem uma hora e meia. E alguns
marinheiros, que ali andavam com um chinchorro, pescaram peixe miúdo,
não muito. Então volvemo-nos às naus, já bem de noite.
Ao
domingo de Pascoela pela manhã, determinou o Capitão de ir ouvir
missa e pregação naquele ilhéu. Mandou a todos os capitães que
se aprestassem nos batéis e fossem com ele. E assim foi feito.
Mandou naquele ilhéu armar um esperavel, e dentro dele um altar mui
bem corregido. E ali com todos nós outros fez dizer missa, a qual
foi dita pelo padre frei Henrique, em voz entoada, e oficiada com
aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes, que todos eram
ali. A qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com
muito prazer e devoção.
Ali
era com o Capitão a bandeira de Cristo, com que saiu de Belém, a
qual esteve sempre levantada, da parte do Evangelho.
Acabada
a missa, desvestiu-se o padre e subiu a uma cadeira alta; e nós
todos lançados por essa areia. E pregou uma solene e proveitosa
pregação da história do Evangelho, ao fim da qual tratou da nossa
vinda e do achamento desta terra, conformando-se com o sinal da
Cruz, sob cuja obediência viemos, o que foi muito a propósito e
fez muita devoção.
Enquanto
estivemos à missa e à pregação, seria na praia outra tanta
gente, pouco mais ou menos como a de ontem, com seus arcos e setas,
a qual andava folgando. E olhando-nos, sentaram-se. E, depois de
acabada a missa, assentados nós à pregação, levantaram-se muitos
deles, tangeram corno ou buzina, e começaram a saltar e dançar um
pedaço.
E
alguns deles se metiam em almadias -- duas ou três que aí tinham
-- as quais não são feitas como as que eu já vi; somente são três
traves, atadas entre si. E ali se metiam quatro ou cinco, ou esses
que queriam não se afastando quase nada da terra, senão enquanto
podiam tomar pé.
Acabada
a pregação, voltou o Capitão, com todos nós, para os batéis,
com nossa bandeira alta. Embarcamos e fomos todos em direção à
terra para passarmos ao longo por onde eles estavam, indo, na
dianteira, por ordem do Capitão, Bartolomeu Dias em seu esquife,
com um pau de uma almadia que lhes o mar levara, para lho dar; e nós
todos, obra de tiro de pedra, atrás dele.
Como
viram o esquife de Bartolomeu Dias, chegaram-se logo todos à água,
metendo-se nela até onde mais podiam. Acenaram-lhes que pousassem
os arcos; e muitos deles os iam logo pôr em terra; e outros não.
Andava
aí um que falava muito aos outros que se afastassem, mas não que a
mim me parecesse que lhe tinham acatamento ou medo. Este que os
assim andava afastando trazia seu arco e setas, e andava tinto de
tintura vermelha pelos peitos, espáduas, quadris, coxas e pernas até
baixo, mas os vazios com a barriga e estômago eram de sua própria
cor. E a tintura era assim vermelha que a água a não comia nem
desfazia, antes, quando saía da água, parecia mais vermelha. |