O
sertanejo
José
de Alencar
Um
dos romances, bastante brasileiro, em que Alencar dá expansão ao
seu gênero de pincelador retratando com belas e radiantes cores a
paisagem do sertão um destemido vaqueiro a serviço capitão-mor
Arnaldo Campelo que enfrenta os mais sérios riscos na esperança de
constar a simpatia da filha do fazendeiro. Arnaldo tem destaque nas
cavalhadas a maneira medieval de Ivone famosas liças. Marcos
Fragoso se faz seu único rival. Afinal Dona Flor é prometida a
Leandro Barbilho. No instante casamento, surge os inimigos de
Campelo. Encerra o tiroteio, morre Leandro Barbalho, Dona Flor
lamente enquanto Arnaldo tenta consolá-la.
O
trecho selecionado permitirá a análise do relacionamento existente
entre Arnaldo e D. Flôr. Possibilitando-nos a comparação com o
trecho de Inocência. "Já tinham soado no sino da capela as últimas
badaladas do toque de recolher. Por toda a fazenda da Oiticica,
sujeita a um certo regime militar, apagavam-se os fogos e cessava o
burburinho da labutação quotidiana. Só nas noites de festa
dispensava o capitão-mor essa rigorosa disciplina, e dava licença,
que então por desforra atravessavam de sol a sol. Era uma noite de
escuro; mas como o são as noites do sertão, recamadas de estrelas
rutilantes, cujas centelhas se cruzam e urdem como a finíssima teia
de uma lhama acetinada. A casa principal acabava de fechar-se e das
portas e janelas apenas escapavam-se pelos interstícios, uma réstia
de luz, que iam a pouco extinguindo-se . Nesse momento um vulto
oscilou na sombra, e coseu-se, à parecer que olhava para o
nascente. Era Arnaldo. Resvalando ao longo do outão, chegara à
janela do camarim de D. Flôr, e uma força irresistível o deteve
ali. No gradil das rótulas recendia um breve perfume, como se por
ali tivesse coado a brisa carregada das exalações da baunilha.
Arnaldo adivinhou que a donzela antes de recolher-se, viera respirar
a frescura da noite e encostara a gentil cabeça na gelosia, onde
ficara a fragrância de seus cabelos e de sua cútis acetinada. Então
o sertanejo, que não se animaria nunca a tocar esses cabelos e essa
cútis, beijou as grades para colher aquela emanação de D. Flôr,
e não trocaria decerto a delícia daquela adoração pelas
voluptuosas carícias da mulher mais formosa. Aplicando o ouvido
percebeu o sertanejo no interior do aposento um frolico de roupas,
acompanhado pelo rumor de um passo breve e sutil. D. Flôr volvia
pelo aposento. Naturalmente ocupada nos vários aprestos do repouso
da noite. Um doce sussurro,como da abelha ao seio do rosal, advertiu
a Arnaldo que a donzela rezava antes de deitar-se e
involuntariamente também ajoelhou-se para rogar a Deus por ela. Mas
acabou suplicando a Flôr perdão para a sua ternura. Terminada a
prece a donzela aproximou-se do leito. O amarrotar das cambraias a
atulharem-se indicou ao sertanejo que Flor despia as suas vestes e
ia trocá-las pela roupa de dormir. Através das abas da janela, que
lhe escondiam o aposento, enxergou com os olhos d'alma a donzela,
naquele instante em que os castos véus a abandonavam; porém seu
puro o céu azul ao deslize de uma nuvem branca de jaspe surgisse
uma estrela. A trepidação da luz cega; e tece um véu cintilante,
porém mais espesso do que a seda e o linho. Cessaram de todo os
rumores do aposento, sinal de que D.Flôr se havia deitado/ Ouvindo
um respiro brando e sutil como de um passarinho, conheceu Arnaldo
que a donzela dormia o sono plácido e feliz. Só então afastou-se
para acudir ao emprazamento que recebera" |