O
pagador de promessas
Dias
Gomes
Aspectos
estruturais
Trata-se
de um texto escrito para teatro, ou seja, para ser levado ao palco,
ser encenado. A peça é dividida em três atos, sendo que os dois
primeiros ainda são subdivididos em dois quadros cada um. Após a
apresentação dos personagens, o primeiro ato mostra a chegada do
protagonista Zé do Burro e sua mulher Rosa, vindos do interior, a
uma igreja de Salvador e termina com a negativa do padre em permitir
o cumprimento da promessa feita. O segundo ato traz o aparecimento
de diversos novos personagens, todos envolvidos na questão do
cumprimento ou não da promessa e vai até uma nova negativa do
padre, o que ocasiona, desta vez, explosão colérica em Zé do
Burro. O terceiro ato é onde as ações recrudescem, as incompreensões
vão ao limite e se verifica o dramático desfecho.
Enredo
Primeiro
ato
Primeiro
quadro.
A
ação da peça tem início nas primeiras horas da manhã (4 e
meia), numa praça, em frente a uma igreja, em Salvador. O
personagem denominado Zé do Burro carrega uma cruz e se aloja na
frente da igreja. A seu lado Rosa, sua mulher, apresentada como
tendo "sangue quente" e insatisfação sexual. Zé espera
a igreja abrir para cumprir sua promessa, feita a Santa Bárbara.
Aparecem no lugar, algum tempo depois, Marli e Bonitão: ela
prostituta; ele, gigolô. Há uma clara relação de exploração e
dependência entre eles. Encontrando Zé, Bonitão dirige-se a ele e
percebe ser alguém ingênuo. Rosa, por sua vez, conversando com o
gigolô, queixa-se de Zé, contando que ele, na sua promessa,
dividiu suas terras com lavradores pobres. Percebendo a ingenuidade,
Bonitão propõe-se a providenciar um local para Rosa descansar. Zé
não só aceita, como incentiva. Saem os dois, Bonitão e Rosa, de
cena.
Segundo
quadro.
Aos
poucos, começa o movimento ao redor da praça. Aparecem a Beata, o
sacristão e o Padre Olavo, titular da igreja. Zé explica a
promessa: Nicolau foi ferido com a queda de uma árvore; estando
para morrer, Zé fez a promessa. O burro - Nicolau é um burro! -
salva-se. Ingenuamente, Zé revela ter usado as rezas de Preto
Zeferino e feito a promessa num terreiro de candomblé, a Iansã,
equivalente afro de Santa Bárbara. O padre fica escandalizado.
Estabelece-se o conflito. O sincretismo Iansã-Santa Bárbara,
natural para Zé do burro, é um grandioso pecado para o padre. A
situação agrava-se com a revelação da divisão de terras.
Impasse. O padre manda fechar a igreja e proíbe o cumprimento da
promessa. Zé do burro fica atônico.
Segundo
ato
Primeiro
quadro.
Duas
horas mais tarde, já a movimentação no lugar é intensa. O
Galego, dono do bar, abriu seu estabelecimento. Surgem Minha Tia,
vendedora de acarajés, carurus e outras comidas típicas, Dedé
Cospe-Rima, poeta popular, ao estilo repentista e o Guarda. Zé do
burro quer cumprir a promessa. O Guarda tenta intervir. Rosa
reaparece com "ar culpado". Chega o Repórter. Seguindo a
linha do oportunismo sensacionalista, o repórter quer tirar
vantagens da história de Zé do Burro. Quer torná-lo um mártir,
para virar notícia. Enquanto isso descobre-se que Rosa transou com
Bonitão. Marli faz um pequeno escândalo, denunciando a história
Rosa-Bonitão.
Segundo
quadro.
Três
da tarde, Dedé oferece poemas para Zé, a fim de derrotar o Padre.
Aparecem, em momentos subseqüentes, o capoeirista Mestre Coca e o
policial, o Secreta, chamado por Bonitão, ficando ambos, por
enquanto, nas cercanias. Zé começa a perder a paciência e arma
uma gritaria. O padre reage. Chega o Monsenhor, autoridade da
igreja, propondo a Zé uma solução: ele, Monsenhor, na qualidade
de representante da Igreja, pode liberar Zé da promessa, dando-a
por cumprida. Zé não aceita, dizendo que promessa foi feita à
Santa e só ela poderia liberá-lo. Segue o impasse. Zé explode
novamente e avança com a cruz sobre a Igreja. O padre fecha a
porta. Zé, já desesperado, bate com a cruz na porta. O drama é
total.
Terceiro
ato.
Entardecer.
Muita gente na praça e nos arredores da Igreja. Há uma roda de
capoeira. O Galego, oportunista, oferece comida grátis a Zé, pois
a história está trazendo movimento ao seu bar. O Secreta, no bar,
avisa que a polícia prenderá Zé, ameaçando os capoeiristas, caso
eles interfiram. Marli volta. Ofende Rosa, ofende Zé. O
protagonista parece mudar de atitude. Resolve ir embora "à
noite". Rosa quer ir embora já. Conta que Bonitão avisou a
polícia. Retorna o repórter, que tenta montar um verdadeiro circo
em torno do Zé, com o objetivo de vender o jornal. Chega Bonitão e
convida Rosa para ir com ele. Zé pede a ela para ficar. Rosa
hesita, a princípio, mas, em seguida, vai com Bonitão. Mestre Coca
avisa Zé sobre a chegada da polícia. Zé está perplexo:
"Santa Bárbara me abandonou". Da igreja saem o Sacristão,
o Guarda, o Padre e o Delegado. Tensão da cena acentua-se. Zé
ainda tenta, ingênua e inutilmente, explicar alguma coisa. Ao ser
cercado, puxa uma faca. As autoridades reagem. Os capoeiristas também.
Briga e confusão. De repente, um tiro espalha gente para todos os
lados. Zé é mortalmente ferido. Mestre Coca olha para os
companheiros, que entendem a mensagem. Os capoeiristas tomam o corpo
do Zé, colocam-no sobre a cruz e, ignorando padre e polícia,
entram na igreja, carregando a cruz.
Comentário
A
peça de Dias Gomes tem nítidos propósitos de evidenciar certas
questões socio-culturais da vida brasileira, em detrimento do
aprofundamento psicológico de seus personagens. Assim, ganha força
no drama a visão crítica quanto:
a)
à intolerância da Igreja católica, personificada no autoritarismo
do Padre Olavo, e na insensibilidade do Monsenhor convocado a
resolver o problema;
b)
à incapacidade das autoridades que representam o Estado - no episódio,
a polícia - de lidar com questões multiculturais, transformando um
caso de diferença cultural em um caso policial;
c) à voracidade
inescrupulosa da imprensa, simbolizada no Repórter, um perfeito
mau-caráter, completamente desinteressado no drama do protagonista,
mas muito interessado na repercussão que a história pode
ter;
·.
d)
ao grande fosso que separa, ainda, o Brasil urbano do Brasil rural:
Zé do Burro não consegue compreender por que lhe tentam impedir de
cumprir sua promessa; os padres, a polícia, a imprensa não
conseguem compreender quem é Zé do Burro, sua origem ingênua, com
outros códigos culturais, outras posturas. Além disso, a peça
mostra as variadas facetas populares: o gigolô esperto, a vendedora
de quitutes, o poeta improvisador, os capoeiristas. O final simbólico
aponta em duas direções. Em primeiro lugar a morte do Zé do Burro
mostra-se com fim inevitável para o choque cultural violento que se
opera na peça: ninguém, entre as autoridades da cidade grande, é
capaz de assimilar o sincretismo religioso tão característico de
grandes camadas sociais no Brasil, especialmente no interior
nordestino. Em segundo lugar, a entrada dos capoeiristas na igreja,
carregando a cruz com o corpo, sinaliza para rechaçar a inutilidade
daquela morte: os populares compreenderam o gesto de Zé do Burro. |