Memorial
do convento
José
Saramago
Apesar
de ter sido trazida da Áustria já há dois anos, especialmente
para gerar o sucessor ao trono de D. João V, rei de Portugal, a
rainha D. Maria Ana Josefa parece não conseguir engravidar. Sendo o
rei um símbolo de virilidade, ela é quem é considerada infértil
e, conseqüentemente, a única culpada pelo fato de o rei ainda não
ter tido herdeiros. Quando, ao cair da noite, o rei se prepara
para ir ao quarto da rainha para mais uma tentativa, chega ao palácio
D. Nuno da Cunha, bispo inquisidor, acompanhado de um velho frade
franciscano, Antônio de S. José, que propõe uma solução para o
problema do rei. Diz o frade que a rainha engravidaria assim que o
rei prometesse construir um convento para os frades da ordem dos
franciscanos na vila de Mafra. Feita a promessa, o casal real
vai finalmente para o quarto.
Depois
de consumado o ato sexual, rei e rainha dormem e sonham cada um com
seus próprios desejos, suas diferentes fantasias _ : ela sonha que
tem um encontro amoroso com seu cunhado, o Infante D. Francisco,
enquanto o rei sonha que seu pênis está se transformando em árvore
e, logo em seguida, em colunas do convento que ele prometera
construir para os franciscanos _ .
Em
tom irônico, o narrador revela suspeitas de que, antes mesmo da
promessa, talvez a rainha já estivesse grávida e que talvez o
padre o já sabia disso _ . Em todo caso, se a concepção da rainha
ocorresse, o fato seria visto como mais um entre os vários milagres
tradicionalmente relacionados à ordem de São Francisco. Diz-se,
por exemplo, que um tal frei Miguel da Anunciação, mesmo depois de
morto, conservara seu corpo intacto durante dias, atraindo, desde
então, uma grande quantidade de devotos para sua igreja. Em outra
ocasião, a imagem de Santo Antônio, que vigiava uma igreja
franciscana, locomovera-se até à janela, onde ladrões tentavam
entrar, passando-lhes assim um grande susto. E do convento de S.
Francisco de Xabregas conta-se que, certa vez, suas lâmpadas tinham
sido roubadas, e logo depois foram encontradas, como se por
acaso, num mosteiro de jesuítas. A gravidez da rainha foi atribuída
ao poder milagroso de Santo Antônio ou, segundo outros, à ameaça
que um frade velho fizera contra a imagem do santo, acusando o
protetor de descuido.
Passado
o "entrudo”, como de costume, durante a quaresma as ruas se
encheram de gente que fazia cada um suas penitências. Segundo a
tradição, a quaresma era a única época em que as mulheres podiam
percorrer as igrejas sozinhas e assim gozar de uma rara liberdade
que lhes permitia até mesmo de se encontrarem com seus amantes
secretos. Porém, D. Maria Ana não podia gozar dessas liberdades,
pois, além de ser rainha, agora se encontrava grávida. Assim,
tendo ido para a cama cedo, consolou-se em sonhar outra vez com D.
Francisco, seu cunhado. Passada a quaresma, todas as mulheres
retornaram para a reclusão de suas casas.
Em
contraste com os conflitos da família real está a história de
Baltasar Mateus, um homem de 26 anos, conhecido como "o Sete-Sóis".
Baltasar dirige-se a Lisboa, caminhando pela estrada real, depois de
ter sido soldado e perdido a mão esquerda em uma batalha contra a
Espanha, para decidir a quem pertenceria o trono
espanhol _ . Com um que lhe servia de mão e um espigão de
ferro que funcionava como uma arma, Baltasar pede esmola em Évora
e, a caminho de Lisboa, mata um ladrão que havia tentado assaltá-lo.
Não sabendo ainda se ficaria em Lisboa ou se continuaria viagem em
direção a Mafra, onde ainda viviam seus pais, Baltasar anda pelas
ruas da capital e conhece João Elvas, com quem, junto a outros
mendigos, vai passar a noite num "telheiro abandonado" _ .
Antes de dormir, cada um conta histórias de crimes que ocorreram na
cidade, os quais são comparados às mortes que alguns deles
presenciaram na guerra _ .
Não
somente por causa da gravidez de cinco meses, mas também por estar
de luto pela morte de seu irmão, a rainha Maria Ana deixa de freqüentar
o grande auto-de-fé na praça do Rossio em Lisboa, evento
muito popular, que já há dois anos não ocorria. Ali seriam
castigados pela Inquisição diversos casos de heresia _
.
Entre
os condenados pelo Santo Ofício, um é focalizado com maior
destaque. É Sebastiana Maria de Jesus, acusada de ser feiticeira e
cristã-nova. Sebastiana, durante alguns parágrafos, torna-se a
narradora da história _ .
Sebastiana
Maria de Jesus tem uma filha de 19 anos: Blimunda, jovem de poderes
sobrenaturais, que assiste à procissão ao lado do padre Bartolomeu
Lourenço. Perto dela está um homem, Baltasar Mateus, o Sete-Sóis,
a quem ela se dirige e cujo nome procura saber. Voltando a sua casa,
Blimunda leva consigo o padre e deixa a porta aberta para que o recém-conhecido
também possa entrar. Depois de o padre sair, Blimunda convida
Baltasar para que fique morando em sua casa, pelo menos até que ele
tivesse que voltar a Mafra. No dia seguinte, ao acordar, Blimunda,
sem abrir os olhos, come um pedaço de pão e promete a Baltasar que
nunca o olharia "por dentro" _ . Começa aqui a fiel e
duradoura amizade entre os três personagens que se contrapõem aos
personagens da família real, heróis da historiografia oficial.
Inicia-se também a relação amorosa entre Baltasar e Blimunda, que
ocupará o centro da narrativa _ .
Ao
encontrar-se com o padre Bartolomeu Lourenço, que estava procurando
usar sua influência no palácio para conseguir dinheiro. Baltasar
fica sabendo que o padre era conhecido como "o Voador",
por ter criado uma máquina a qual todos ridicularizam, chamando de
"a passarola". Baltasar aceita o convite do padre para ser
seu ajudante no projeto de construir a tal "máquina de
voar", mas enquanto não chega o dinheiro para o material
necessário, fica trabalhando em um açougue _ .
Enquanto
isso, no palácio, para decepção do rei, a rainha dá à luz uma
menina, Maria Xavier Francisca Leonor Bárbara, que é batizada por
sete bispos. Apesar de o frade Antônio de S. José já ter morrido
quando do nascimento da criança, a promessa do rei de construir o
convento seria mantida.
Baltasar,
que sempre dormia no lado direito da enxerga _ , procura saber por
que Blimunda sempre comia pão ao acordar, antes mesmo de abrir os
olhos. Ele já tinha tentado descobrir o mistério através do
padre Bartolomeu Lourenço que, apesar de conhecer a verdadeira razão,
não a quis revelar, dizendo apenas que voar é um mistério pequeno
se comparado ao mistério de Blimunda. Certa manhã, tentando
desvendar esse mistério de uma vez por todas, Baltasar esconde o pão
de Blimunda que, ao acordar, começa a procurá-lo desesperadamente.
Finalmente, depois de receber o pão das mãos de Baltasar, Blimunda
revela que tem o poder de "olhar por dentro das pessoas",
o que podia fazer somente quando estava em jejum. No dia seguinte,
para provar-lhe seu poder (ou infortúnio), Blimunda, ainda em
jejum, sai à rua com Baltasar, evitando olhá-lo, já que antes
tinha prometido não "olhá-lo por dentro". Dentre as
coisas que vê, Blimunda descreve a gravidez de uma mulher, o que
existe no subsolo, o órgão sexual de um jovem,
apodrecido por doença venérea, e até mesmo uma moeda enterrada no
chão _ .
Enquanto
no palácio nascia D. Pedro, segundo filho da família real, e o rei
viajava a Mafra para escolher o lugar onde seria erguido o convento
monumental, Baltasar e Blimunda mudam-se para a abegoaria na
quinta do duque de Aveiro, amigo do rei, em S. Sebastião da
Pedreira. Além de proporcionar-lhe o lugar de trabalho, o rei, que
se interessara pelo projeto do padre como uma criança se interessa
por um brinquedo novo, com sua amizade e influência protegia o
padre das garras da Inquisição que, caso viesse a saber dos
projetos do padre, teria motivos suficientes para acusá-lo de
heresia.
Na
quinta do duque de Aveiro, Padre Bartolomeu, com a ajuda de Baltasar
e Blimunda, prossegue na construção da passarola. Decide, então,
partir à Holanda, onde dizem que os sábios conhecem os mistérios
da alquimia e a natureza do éter, o único elemento que,
segundo ele, estava faltando para que sua invenção fosse concluída
_ _ .
Baltasar
e Blimunda, depois que o padre parte, decidem mudar-se para Mafra,
terra natal de Baltasar. Antes de partir, o casal decide assistir,
ao invés de mais um auto-de-fé que seria realizado na praça
do Rossio, a uma outra festa popular, a tourada. Assim como os
autos-de-fé, as touradas sempre terminavam com um forte cheiro de
carne queimada, proveniente do churrasco realizado no final da festa
_ . Ao chegar à casa da família em Mafra, acompanhado de Blimunda,
Baltasar é recebido por sua mãe, Marta Maria, já que João
Francisco, seu pai, estava trabalhando no campo. Baltasar fica
sabendo que sua única irmã, Inês Antônia, estava casada com Álvaro
"Pedreiro" Diogo. Dos dois filhos desse casal, apenas um
sobreviveria, sendo que o outro morreria ao atingir a mesma idade em
que o infante D. Pedro, filho de D. João V, também morreria, anos
mais tarde _ .
Baltasar
fala à família de suas intenções de ficar morando com a mulher
em Mafra. A família acolhe bem Blimunda, depois de se certificar de
que ela não era judia ou cristã-nova, o que não era completamente
verdade. O pai informa ao filho recém-chegado de que abrira mão de
suas terras na Vela, pois elas haviam sido desapropriadas para a
construção do convento, uma obra monumental que, segundo
acreditavam, traria muitos empregos para os moradores da região,
especialmente para o cunhado de Baltasar, que era pedreiro. Baltasar
vai visitar as obras do convento e, ao retornar, encontra Blimunda
conversando com Maria Marta, de quem a jovem se tornaria companheira
e ajudante, enquanto Baltasar iria trabalhar com o pai no cultivo de
terras que não lhes pertenciam _ .
Encontrando-se
o rei bastante enfermo, seu irmão aproveita as perspectivas que lhe
são favoráveis e revela à rainha seu interesse em tornar-se seu
marido e o novo rei. O infante D. Francisco declara saber que é
objeto dos sonhos da rainha, numa conversa que seria a primeira
entre tantas que finalmente acabariam por destruir o desejo original
que ela experimentara. Mesmo depois de recuperada a saúde do rei,
seus antigos sonhos nunca teriam aquele mesmo encanto de
antigamente, já que ela tem plena consciência de que sua condição
de mulher e rainha mudaria pouco, fosse ela casada com um ou outro
irmão _ .
Voltando
da Holanda, onde estivera por três anos, o padre Bartolomeu Lourenço
dirige-se à quinta de S. Sebastião da Pedreira, encontrando a
abegoaria abandonada. Algumas semanas depois, parte em direção
a Coimbra, de onde conta retornar já "doutor em cânones".
Antes, porém, decide visitar o casal amigo em Mafra, onde, ao
chegar, encontra um pároco, Francisco Gonçalves, que lhe oferece
um quarto para ficar hospedado. Em conversa com Blimunda e Baltasar,
o padre Bartolomeu conta-lhes o que descobrira na Holanda, ou seja,
que ao contrário do que se pensa, o éter não é uma substância
que possa ser encontrada pelas artes da alquimia, mas que, antes de
subir ao céu, o éter existe dentro das pessoas, pois nada mais é
do que a "vontade" de cada um. Assim, o padre pede a
Blimunda que olhe dentro das pessoas e encontre essa
"vontade", que é como uma nuvem fechada. E que, cada vez
que percebesse a vontade de alguém escapando, que ela a capturasse
usando um frasco contendo âmbar, que é a substância que atrai o
éter _ .
Em
Mafra, pela primeira vez Blimunda comunga conforme manda os
ensinamentos da igreja católica, ou seja, em jejum. Ao fazê-lo, vê
na hóstia uma nuvem fechada, o que muito a impressiona. Já tendo o
padre ido para Coimbra há algum tempo, o casal decide partir de
volta à quinta, assim que passassem as festividades de inauguração
dos alicerces do convento, cujas primeiras pedras seriam colocadas
pelas mãos do próprio rei.
Dias
antes da inauguração dos alicerces, uma grande tempestade de
vento, comparável ao "sopro de Adamastor" _ derruba a
igreja de madeira construída especialmente para a cerimônia.
Sabendo do acidente, o rei começa a distribuir moedas de ouro, e
distribui ainda mais quando os pedreiros voltam ao trabalho e
reconstroem a igreja em dois dias, de modo que o que era catástrofe
passou a ser visto como milagre. No primeiro dia de festividades, a
inauguração foi feita em cerimônias restritas a poucos convidados
e, no dia seguinte, (ou seja, a 17 de novembro de 1717, seis anos
depois de o rei ter feito sua promessa), realizou-se uma grande
festa pública.
De
volta à quinta do Duque de Aveiro, Baltasar desmonta a passarola
que, abandonada, encontrava-se com a estrutura enferrujada e os
panos cheios de mofo. Pouco tempo depois chega o padre, que logo
quer saber quantas vontades Blimunda já recolhera. Ao ouvir que até
então havia apenas trinta "vontades" na garrafa, o padre
lhe diz que eram necessárias pelo menos duas mil. Baltasar continua
trabalhando na "máquina de voar" enquanto padre
Bartolomeu vai constantemente a Coimbra, a fim de concluir seus
estudos. Quando volta definitivamente para Lisboa, o padre fica
conhecendo o músico Domenico Scarlatti , napolitano de 35 anos,
professor particular de música da infanta D. Maria Bárbara que, a
essas alturas, já tem nove anos de idade. O encontro dos dois
homens estimula uma discussão sobre o poder extraordinário da música
e a essência da verdade, comparando-se finalmente a música do
italiano com a oratória do padre _ .
Em
outra ocasião, o padre e o compositor se encontram e juntos vão à
S. Sebastião da Pedreira, onde o padre revela seu segredo ao músico
e apresenta-lhe a "trindade terrestre", composta por ele,
o amigo e ajudante Baltasar e sua companheira Blimunda.
Depois
da partida do italiano que, tendo prometido que voltaria trazendo
seu cravo e o tocaria para o casal e para a passarola, o padre
Bartolomeu Lourenço começa a trabalhar em um sermão que estava
preparando para a festa do Corpo de Deus. Nesse sermão, que a princípio
receberia a aprovação e até mesmo a admiração dos padres e
censores do Santo Ofício, o padre questiona os fundamentos da
doutrina cristã da trindade divina _ .
Sabendo
de uma epidemia de febre amarela que, trazida do Brasil, se
alastrava por Lisboa e já matara quatro mil pessoas em três meses,
o padre Bartolomeu pede a Blimunda que aproveite a ocasião para
recolher as vontades que se desprendem do peito dos moribundos.
Blimunda faz o que o padre lhe pedira e, no final da epidemia,
consegue recolher as duas mil vontades necessárias para fazer voar
a "passarola". O casal acaba se tornando conhecido em
Lisboa, por sempre andar pela cidade sem medo da epidemia _ .
Depois
de cumprida a tarefa, Blimunda fica doente e, durante toda sua
convalescença, o músico Scarlatti vai tocar-lhe cravo, o que
contribui para a restauração de sua saúde.
Estando
as vontades recolhidas e a máquina de voar já pronta, nada falta
para que o invento do padre seja testado. Além disso, o rei já não
pode fazer nada para que o Duque de Aveiro lhes empreste a quinta
onde trabalham. O padre, que andava receoso do Santo Ofício, vai ao
palácio se certificar da proteção e amizade do rei, mas volta
aflito, pois descobrira que o Santo Ofício já estava a sua
procura. Assim, só lhe resta propor ao casal que os três terminem
rapidamente o projeto e juntos fujam na "máquina de
voar". Assim, depois de retirarem o telhado da abegoaria e
colocarem tudo o que possuem dentro da máquina, deixando para trás
apenas o cravo de Domenico Scarlatti , a "passarola" enfim
levanta vôo. Scarlatti , que chegara a quinta a tempo de ver a máquina
subir aos ares, senta-se ao cravo e toca uma música, antes de lançar
o instrumento ao fundo de um poço _ .
Depois
de passarem despercebidos sobre a cidade de Lisboa, os três
sobrevoam a vila de Mafra, onde várias pessoas vêem a máquina
voadora, julgando ser uma aparição do Espírito Santo. Encontrando
dificuldades para controlar a máquina, finalmente a fazem
aterrissar, graças à iniciativa de Blimunda de segurar junto a seu
peito as duas esferas contendo as "vontades".
No
dia seguinte, o casal impede o padre, que se encontrava aflito de
emoção ou de medo, de atar fogo à máquina. Mas não podem
impedir que ele parta sozinho mata adentro, para nunca mais voltar.
Blimunda e Baltasar escondem a máquina sob a ramagem e partem na
mesma direção tomada pelo padre, até chegarem, depois de alguns
dias, a Mafra, onde uma procissão celebrava o milagre que o
povo acreditava ter presenciado. Ali, Baltasar, a exemplo de tantos
outros moradores locais, começa a trabalhar nas obras do convento,
cuja dimensão e quantidade de homens que emprega muito o
impressionam, apesar de achar o ritmo com que se desenvolve
demasiado lento. Chegam notícias do terremoto de Lisboa, que foi
seguido de inaudita tempestade _ . Apesar dos estragos causados por
ambos os desastres, implementaram-se os negócios de vários setores
da sociedade e, em particular, da igreja, que freqüentemente se
aproveitava das catástrofes para alimentar a religiosidade popular.
Dois
meses depois de terem chegado a Mafra, Baltasar decide voltar ao
Monte Junto, onde haviam deixado a máquina de voar. Ele a encontra
no mesmo lugar, mas necessitando de alguns reparos. A partir de então,
ele faria visitas freqüentes ao local, cuidando da manutenção da
máquina, sempre com uma certa esperança de reencontrar o padre.
Algum tempo depois, Domenico Scarlatti chega a Mafra, onde
fora visitar as obras do convento, ficando hospedado na casa de um
visconde. Ao se cruzarem na rua, Blimunda e Scarlatti, tentando
evitar as suspeitas dos moradores, que poderiam achar estranho duas
pessoas de níveis sociais tão diferentes se conhecerem, conversam
às escondidas. O músico trazia a notícia da morte do padre
Bartolomeu de Gusmão em Toledo, Espanha, para onde ele havia fugido
no dia 19 de novembro, o dia da tempestade em Lisboa. Em seguida,
enquanto no palácio o rei medita sobre suas riquezas, celebra-se em
Mafra uma missa para um grande número de trabalhadores _ .
A
construção do convento exige esforços colossais e causa muitas vítimas
_ . Um dos eventos mais penosos foi o transporte, da vila de Pêro
Pinheiro até a vila de Mafra, de uma imensa pedra, destinada a ser
a laje de uma varanda sobre o pórtico da igreja. Seiscentos homens
e um grande número de bois foram utilizados na empreitada, que
durou oito dias, durante os quais não faltaram acidentes fatais. Um
dos casos mais dramáticos foi o do trabalhador Francisco Marques,
que acabou esmagado sob uma roda de um carro de bois.
Depois
de quase quatro anos em Mafra, Blimunda pela primeira vez pede a
Baltasar para acompanhá-lo em uma de suas visitas periódicas ao
Monte Junto. Depois de lá chegarem, resolvem passar a noite para
que, ao amanhecer, Blimunda, ainda em jejum, se certificasse de que
as vontades ainda estavam guardadas dentro de cada uma das duas
esferas.
Enquanto
isso, na residência real, D. João V manifesta seu desejo de
construir uma Basílica em Portugal como a de S. Pedro em Roma _ .
Para dar conta do projeto gigantesco, o rei chama o arquiteto alemão
João Frederico Ludovice (ou Ludwig), que o dissuade da idéia, com
o argumento de que o rei não viveria o suficiente para ver a obra
concluída _ . Convencido, o rei decide então ampliar a
dimensão do projeto do convento de Mafra, de modo que, ao invés de
80, coubessem nele 300 frades, o que muito agrada ao provincial dos
franciscanos da Arrábida. O projeto é, sem dúvida,
ambicioso demais para os recursos do reino, o que se reflete em
conversa, imaginada pelo narrador, entre o rei e o almoxarife ou
guarda-livros _ .
Finalmente,
o rei decide que a sagração da basílica deveria ser realizada
dois anos mais tarde, no dia vinte e dois de outubro de 1730, quando
ele completasse 41 anos, estivesse ou não a obra concluída. Com a
ampliação do projeto, tornara-se necessário que se recrutasse um
grande número de trabalhadores, dentre os quais muitos seriam
levados a fazer o trabalho contra a própria vontade, o que causaria
grande tristeza a muitas famílias de toda a região.
Simultaneamente, as famílias reais de Portugal e de Espanha logo se
preparariam, em 1729, para se unirem através de dois casamentos.
De
fato, a "troca das princesas" uniria, em 1729, as famílias
reais de Portugal e Espanha, segundo um acordo que já havia sido
concluído havia quatro anos. Mariana Vitória, da Espanha, de 11
anos, seria trazida a Portugal para que se casasse com o infante D.
Pedro, enquanto Maria Bárbara, de 17 anos, seria levada a Espanha
para unir-se a Fernando, dois anos mais novo que a noiva. Assim, uma
comitiva leva a família real até a fronteira dos dois países,
sobre o rio Caia, em Elvas, passando por Mafra. Na região de Mafra,
os trabalhadores, que à força são levados às obras do convento,
chamam a atenção da princesa e por um momento lhe despertam
compaixão. Além da coincidência entre o nascimento da princesa e
a promessa do rei de construir o convento de Mafra, no nível
popular, duas outras histórias convergem. João Elvas, que
conhecera Baltasar em Lisboa logo depois da guerra, acompanha, junto
a um grupo de pedintes, a comitiva à fronteira onde está situada
sua cidade natal. Ao conversar com um certo Julião Mau-Tempo, que
menciona a enorme pedra transportada até Mafra, João Elvas
lembra-se do ex-soldado, seu amigo Baltasar, com quem o interlocutor
havia trabalhado _ .
Em 1730, pouco mais de um ano depois da "troca das
princesas", a basílica do convento seria enfim consagrada,
mesmo estando as obras, tanto as da basílica como as do convento,
ainda longe de serem concluídas. Várias estátuas de santos
desfilam pelas ruas e são transportadas até o local onde seriam
instaladas. Blimunda e Baltasar resolvem ver as imagens dos santos
Segundo acreditam, os santos passariam a noite conversando pela última
vez, antes de serem isolados em seus nichos, na basílica.
Ao
amanhecer, Baltasar decide ir sozinho ao Monte Junto, verificar o
estado da "passarola". Ao tentar fazer os já costumeiros
reparos na máquina, Baltasar tropeça e rasga os panos que cobriam
as esferas, de modo que quando os raios de sol as atingem, a máquina
inesperadamente levanta vôo. Blimunda vai procurá-lo no dia
seguinte, ao mesmo tempo em que romarias se dirigem à sagração da
basílica, mas não encontra seu amado, apenas o espigão de ferro,
que ela não hesita em usar quando um frade a tenta violá-la _ .
Blimunda
continua a procurar Baltasar durante nove anos, perambulando por
todas as partes do país. Sua jornada termina em Lisboa, em situação
semelhante àquela em que conhecera Baltasar. Em 1739, em um
auto-de-fé na praça do Rossio, onze vítimas encontram-se a
caminho da fogueira -- inclusive o dramaturgo Antônio José da
Silva, "O Judeu". Estava lá também Baltasar, cujo vulto
Blimunda vê. Quando Baltasar está para morrer, sua
"vontade" se desprende e é finalmente recolhida dentro do
peito de sua amada Blimunda. |