Memorial
de Aires
Machado
de Assis
Memorial
de Aires, última obra de Machado de Assis, foi publicada em 1908,
mesmo ano da morte do escritor. Como Memórias Póstumas de Brás
Cubas, esta obra não tem propriamente um enredo: estrutura-se em
forma de um diário escrito pelo Conselheiro Aires (personagem que já
aparecera em Esaú e Jacó.), onde o narrador relata, miudamente,
sua vida de diplomata aposentado no Rio de Janeiro, de 1888 e 1889.
Sucedem-se, nas anotações do conselheiro, episódios envolvendo
pessoas de suas relações, leituras do seu tempo de diplomata e
reflexões quanto aos acontecimentos políticos. Destaca-se, dando
uma certa unidade aos vários fragmentos de que livro é composto, a
história de Tristão e Fidélia.
Fidélia,
viúva moça e bonita, é grande amiga do casal Aguiar, uma espécie
de filha postiça de D. Carmo. Tristão afilhado do mesmo casal,
viajara para a Europa, em menino, com os pais.
Visitando,
agora, o Rio de Janeiro, dá muita alegria aos velhos padrinhos.
Tristão e Fidélia acabam por apaixonar-se e, depois de casados,
seguem para a Europa, deixando a saudade e a solidão como
companheiros dos velhos Aguiar e D. Carmo.
Memorial
de Aires é apontado como o romance mais projetado da personalidade
de Machado de Assis.
Escrito
após a morte de Carolina, revela uma visão melancólica da
velhice, da solidão e do mundo. D. Carmo, esposa do velho Aguiar,
seria a projeção da própria esposa de Machado, já falecida. A
ironia e o sarcasmo dos livros anteriores são substituídos por um
tom compassivo e melancólico, as personagens são simples e
bondosas, muito distantes dos paranóicos e psicóticos dos romances
anteriores. Alguns vêem no Memorial de Aires uma obra de retrocesso
a concepções romantizadas do mundo; outros tomam o romance como o
testamento literário e humano de Machado de Assis.
Transcrevemos,
a seguir, alguns fragmentos do diário do conselheiro Aires, que nos
remete à solidão do casal Aguiar. D. Carmo, após a partida de
Tristão e Fidélia.
Observem
a dolorosa reflexão sobre a velhice:
29
de agosto
"Assim
correram as cousas, a mentira e os efeitos. Os dous procuramos
levantar-lhes o ânimo. Eu empreguei algumas reflexões e metáforas,
afirmando que eles viriam este ano mesmo ou no princípio do outro;
bastava saberem a dor que causava aqui a noticia.
D.
Carmo não parecia ouvir-me, nem ele; olhavam para lá, para longe,
para onde se perde a vida presente, e tudo de se vai depressa.
Aguiar ainda pegou na carta que o Desembargador lhe mostrava, leu
para si as palavras de Tristão, que eram aborrecidas em si mesmas,
além da nota que o autor intencionalmente lhes pôs. D. Carmo
pediu-lha com o gesto, ele meteu-a na carteira. A boa velha não
insistiu. Campos e eu saímos pouco depois.
30
de agosto
Praia
fora (esqueceu-me notar isto ontem) praia fora viemos falando
daquela orfandade às avessas em que os dous velhos ficavam, e eu
acrescentei, lembrando-me do marido defunto:
_
Desembargador, se os mortos vão depressa, os velhos ainda vão mais
depressa que os mortos... Viva a mocidade!
Campos
não me entendeu, nem logo, nem completamente. Tive então de lhe
dizer que dizer que aludia ao marido defunto, e aos dous velhos
deixados pelos dous moços, e conclui que a mocidade tem o direito
de viver e amar e separar-se alegremente do extinto e do caduco. Não
concordou, - i que mostra que ainda então não me entendeu
completamente.
Sem
data
Há
seis ou sete dias que eu não ia ao Flamengo. Agora à tarde
lembrou-me lá passar antes de vir para casa. Fui a pé; achei
aberta a porta do jardim, entrei e parei logo. "Lá estão
eles”, disse comigo.
'
Ao fundo, à entrada do saguão, dei com os dous velhos sentados,
olhando um para o outro. Aguiar estava encostado ao portal direito,
com as mãos sobre os joelhos. D, Carmo, à esquerda, tinha os braços
cruzados à cinta. Hesitei entre ir adiante ou desandar o caminho;
continuei parado alguns segundos até que recuei pé ante pé. Ao
transpor a porta para a rua, vi-lhes no rosto e na atitude uma
expressão a que não acho nome certo ou claro; digo o que me
pareceu. Queriam ser risonhos e mal se podiam consolar; consolava-os
a saudade de si mesmos”.
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