Iracema
José
de Alencar
Durante
uma caçada, Martim se perdeu dos companheiros pitiguaras e se pôs
a caminhar sem rumo durante três dias.
No
interior das matas pertencentes à tribo dos tabajaras, Iracema se
deparou com Martim. Surpresa e amedrontada, a índia feriu o branco
no rosto com uma flechada. Ele não reagiu. Arrependida, a moça
correu até Martim e ofereceu-lhe hospitalidade, quebrando com ele a
flecha da paz.
Martim
foi recebido na cabana de Araquém, que ali morava com a filha. Ao
cair da noite, Araquém havia deixado seu hóspede sozinho, para que
ele fosse servido pelas mais belas índias da tribo. O jovem branco
estranhou que entre elas não estivesse Iracema, a qual lhe explicou
que não poderia servi-lo porque era quem conhecia o segredo da
bebida oferecida ao pajé e devia prepará-la.
Naquela
noite, os tabajaras recepcionavam festivamente seu grande chefe
Irapuã, vindo para comandar a luta contra os inimigos pitiguaras.
Aproveitando-se da escuridão, Martim resolveu ir-se embora. Ao
penetrar na mata, surgiu-lhe à frente o vulto de Iracema.
Visivelmente magoada, ela o seguira e lhe perguntou se alguém lhe
fizera mal, para ele fugir assim. Percebendo sua ingratidão, Martim
se desculpou. Iracema pediu-lhe que esperasse, para partir, à
volta, no dia seguinte, de Caubi, que o saberia guiar pela mata. O
guerreiro branco voltou com Iracema e dormiu sozinho na cabana.
Na
manhã seguinte, incitados por Irapuã, os tabajaras se prepararam
para a guerra contra os pitiguaras, que estavam permitindo a entrada
dos brancos. Martim foi passear com Iracema. Ele estava triste; ela
lhe perguntou se eram saudades da noiva, que deixara para trás.
Apesar da negativa de Martim, a moça o levou para um bosque
silencioso e prometeu fazê-lo ver a noiva; deu-lhe gotas de uma
bebida que ela preparou. Após tomá-las, Martim adormeceu e sonhou
com Iracema; inconsciente, ele pronunciou o nome da índia e a abraçou;
ela se deixou abraçar e os dois se beijaram. Quando Iracema ia se
afastando, apareceu Irapuã, que declarou amor à assustada moça e
ameaçou matar Martim. Diante da reação contrária dela, Irapuã
se foi, ainda mais apaixonado. Apaixonada, porém, estava Iracema
por Martim e passou a ficar preocupada pela vida dele.
Na
manhã seguinte, Martim achou Iracema triste, ao anunciar-lhe que
ele poderia partir logo. Para fazê-la voltar à alegria, ele disse
que ficaria e a amaria. Mas a índia lhe informou que quem se
relacionasse com ela morreria, porque, por ser filha do pajé,
guardava o segredo da Jurema. Ambos sofriam com a idéia da separação.
Seguindo
Caubi, Martim partiu triste, acompanhado por Iracema, também
triste. Com um beijo, os dois se despediram e o branco continuou sua
caminhada somente com Caubi. Irapuã, à frente de cem guerreiros,
cercou os caminhantes para matar Martim. Caubi se opôs e soltou o
grito de guerra, ouvido na cabana por Araquém e pela filha. Esta
correu e assistiu à cena; Irapuã ameaçava Martim, que se mantinha
calmo. A moça quis persuadi-lo a fugir; ele não aceitou a idéia,
resolveu enfrentar Irapuã, apesar de Caubi provocar o enciumado
tabajara para lutar com ele. Quando Irapuã e Caubi iam começar uma
luta corpo a corpo, ouviu-se o som de guerra dos pitiguaras, que
vinham atacar os tabajaras. Chefiados por Irapuã, os índios
correram para enfrentar o inimigo. Só Iracema e Martim não se
movimentaram.
Como
não encontrasse os pitiguaras – provavelmente escondidos na mata,
Irapuã achou que o grito de guerra fora um estratagema usado por
Iracema para afastá-lo de Martim. Então foi procurá-lo na cabana
de Araquém. Protegendo seu hóspede, o velho pajé ameaçou matar
Irapuã se ele levantasse a mão contra Martim. Para afastar o irado
chefe, Araquém provocou o ronco da caverna que os índios
acreditavam ser a voz de Tupã quando discordava do que acontecia.
Na verdade, esse ronco era um efeito acústico que Araquém forjava.
Mediante isso, Irapuã se afastou.
No
silêncio da noite, ouviu-se na cabana de Araquém o grito
semelhante ao de uma gaivota. Iracema disse ser o sinal de guerra
dos pitiguaras; Martim reconheceu o som que emitia seu amigo Poti.
Iracema ficou com medo porque a fama da bravura de Poti era
conhecida e temida: ele estaria vindo para libertar seu amigo,
destruindo os tabajaras? A moça ficou triste, mas garantiu
fidelidade a Martim, mesmo à custa da morte de seus irmãos de raça.
O branco tranqüilizou-a, afirmando que fugiria, para evitar o
conflito. A índia foi encontrar-se com Poti para lhe dizer que
Martim iria com ele, escondido, a fim de evitar um conflito das
tribos inimigas. Antes de sair, ela ouviu do pai, em segredo, a
recomendação de que, se os comandados de Irapuã viessem matar
Martim, ela o escondesse no subterrâneo da cabana, vedado por uma
grande pedra. Não era prudente Martim afastar-se às claras porque
poderia ser seguido. Nisso, apareceu Caubi para alertar a irmã e
Martim de que os tabajaras tencionavam matar o branco. Iracema pediu
ao irmão que levantasse a pedra para ela e Martim entrassem no
esconderijo e que ele ficasse de guarda.
Irapuã
chegou à porta da cabana, acompanhado de seus subordinados, todos bêbados,
e discutiu com Caubi. Nesse instante, reboou o trovão de Tupã. O
vingativo chefe não se acalmava. Reboou mais uma vez o trovão, que
os índios entenderam como sendo a ameaça de Tupã. Cercaram o
chefe e o levaram de lá, amedrontados.
No
interior da caverna, Iracema e Martim ouviram a voz de Poti, embora
sem vê-lo. Ele lhes declarou que estava vindo sozinho para levar
Martim, seu irmão branco. Por sugestão de Iracema, ficou combinado
que Martim fugiria ao encontro de Poti só na mudança da lua, ocasião
em que os tabajaras estariam em festa e assim ficaria mais fácil os
dois evitarem o encontro com o irado Irapuã.
À
noite, na cabana, ausente Araquém, Martim, ao lado de Iracema, não
conseguia dormir: desejava-a, mas ela era proibida. Então, ele lhe
pediu que trouxesse vinho para apressar o sono. Dormiu e sonhou com
Iracema, chamando-a; ela acorreu acordada. Ainda dormindo, sonhou
que se abraçavam, sendo que Iracema o abraçou de verdade. Na manhã
seguinte, Martim se afastou da moça, dizendo que só podia tê-la
em sonho. Ela guardou o segredo do abraço real e foi banhar-se no
rio. Mal sabia Martim que Tupã havia acabado de perder sua virgem.
No
final da tarde, quando a lua apareceu, os tabajaras se reuniram em
torno do pajé, levando-lhe oferendas. Iracema dirigiu-se à cabana
do pai para buscar Martim e conduzi-lo até Poti que o aguardava
escondido a fim de levá-lo, livrando-o de Irapuã. Iracema os
acompanhou até o limite das terras tabajaras. Quando Martim
insistiu em que ela retornasse para a tribo, ela lhe revelou que não
poderia fazer isso, porque já era sua esposa. Surpreso, Martim
ficou sabendo que tinha sido realidade o que sonhara. Ao escurecer,
interromperam a caminhada e Martim passou a noite na rede com
Iracema. Ao raiar da manhã, Poti, preocupado, os chamou, alertando
que os tabajaras já estavam na sua perseguição, informação que
ele colheu escutando as entranhas da terra. Envergonhado, Martim
pediu que Poti levasse Iracema e o deixasse só, pois ele merecia
morrer. O amigo disse que não o largaria. Iracema apenas sorriu e
continuou com eles.
Irapuã
e seus comandados chegaram ao local onde estavam os fugitivos.
Acorreram também os pitiguaras, sob a chefia de Jacaúna. Travou-se
o inevitável combate. Jacaúna atacou Irapuã; Caubi, agora com ódio
do raptor de sua irmã, atacou Martim, mas, a pedido de Iracema, o
branco simplesmente se defendeu, pois ela disse que, se Caubi
tivesse que morrer, isso aconteceria pelas mãos dela. Então,
Martim deixou Caubi por conta de Poti, que já havia matado vários
tabajaras, e enfrentou Irapuã, afastando Jacaúna. A espada de
Martim espatifou-se no choque com o tacape. Quando Irapuã avançou
contra o banco desarmado, Iracema arrojou-se contra o chefe tabajara
e o impediu de prosseguir a luta. Nesse instante, soou o canto de
vitória: Jacaúna e Poti haviam vencido. Os tabajaras fugiram,
levando Irapuã com eles. Iracema chorou vendo seus irmãos de raça
mortos.
Poti
retornou à sua taba, às margens do rio, feliz por ter salvado seu
irmão branco. Iracema estava triste por ficar hospedada na tribo
inimiga de seu povo. Ciente disso, Martim resolveu procurar um lugar
afastado para morarem. Puseram-se a caminho o casal e Poti, que fez
questão de acompanhá-los. Acharam um local apropriado. Martim
pensava em trazer seus soldados para se aliarem aos pitiguaras
contra os tabajaras.
Na
nova rotina diária, Poti e Martim caçavam, Iracema colhia frutas,
passeava pelos campos, arrumava a cabana, sempre na expectativa da
volta de Martim. Grávida, ela aguardava a hora do parto e já não
sentia mais contrariedade por ter saído de sua nação. Com festas,
Martim foi introduzido na tribo pitiguara adotando o nome de
Coatiabo.
Com
o passar do tempo, Coatiabo começou a entrar em depressão. Iracema
não o fascinava tanto. Ele vivia mais afastado, tomado pelas
lembranças do passado anterior à vida na selva. Ficava olhando as
embarcações passando a longe no mar, sem dar muita atenção à índia.
Certo
dia, chegou até à região dos três um índio que, a mando de Jacaúna,
convocou Poti para a guerra: uns brancos haviam se aliado a Irapuã
para combater os pitiguaras. Martim fez questão de ir com o amigo.
Os
dois guerreiros partiram sem se despedir de Iracema. Ao caminharem
ainda no território de sua nação, à beira de um lago, Poti
fincou no chão uma flecha de Martim e atravessou nela um goiamum
que ele acabara de abater, sabendo que a índia, ao ver a seta
daquele jeito, entenderia o sinal de que o esposo havia partido.
Martim entrelaçou nela uma flor de maracujá. De fato, quando
Iracema foi se banhar no dia seguinte, viu a flecha, entendeu seu
significado e chorou. Voltou triste para a cabana. Todos os dias ela
retornava e tinha confirmação de que Martim estava longe. Seus
dias passaram a ser muito tristes. Numa dessas manhãs, ouviu o som
da jandaia que a acompanhava quando morava entre os seus.
Comoveu-se, arrependeu-se de havê-la deixado para trás e de novo a
tornou sua amiga de todas as horas.
Os
dois guerreiros retornaram da batalha, vitoriosos. Graças à
participação de Martim, que atuou eficazmente, os pitiguaras
venceram, pois, sem a cooperação da raça branca, haveria o empate
das forças indígenas adversárias.
De
novo em sua cabana, Martim e Iracema se amaram como no início de
seu relacionamento. Aos poucos, porém, ele voltou a se isolar
triste, olhando para os horizontes infinitos do mar, com saudade de
sua gente. Iracema se afastava, também triste. Martim sabia que, se
voltasse para sua terra, ela o acompanharia; então, ele estaria
tirando dela um pedaço de sua vida, que era a convivência com seus
parentes e amigos nas selvas.
Martim
negava que estivesse com saudade da namorada branca que deixara em
sua terra, mas a tristeza de Iracema crescia porque ela não
acreditava na negativa dele; então, a desconsolada índia prometia
que sairia da sua vida tão logo nascesse o filho.
Um
dia, apareceu no mar, ao longe, um navio dos guerreiros brancos que
vinham aliar-se aos tupinambás para lutarem contra os pitiguaras.
Poti e Martim armaram uma estratégia de defesa. Esconderam seus
guerreiros e atacaram os inimigos de surpresa. A vitória foi
retumbante.
Enquanto
Martim estava combatendo, Iracema teve sozinha o filho, a quem
chamou de Moacir, filho da dor. Certa manhã, ao acordar, ela viu à
sua frente o irmão Caubi, que, saudoso, vinha visitá-la, trazendo
paz. Admirou a criança, porém surpreendeu-se com a tristeza da irmã,
que pediu a ele que voltasse para junto de Araquém, velho e
sozinho.
De
tanto chorar, Iracema perdeu o leite para alimentar o filho. Foi à
mata e deu de mamar a alguns cachorrinhos; eles lhe sugaram o peito
e dele arrancaram o leite copioso para voltar a amamentar. A criança
estava se nutrindo, mas a mãe perdera o apetite e as forças, por
causa da tristeza.
No
caminho de volta, findo o combate, Martim, ao lado de Poti, vinha
apreensivo: como estaria Iracema? E o filho? Lá estava ela, à
porta da cabana, no limite extremo da debilidade. Ela só teve forças
para erguer o filho e apresentá-lo ao pai. Em seguida, desfaleceu e
não mais se levantou da rede. Suas últimas palavras foram o pedido
ao marido de que a enterrasse ao pé do coqueiro de que ela gostava
tanto. O sofrimento de Martim foi enorme, principalmente porque seu
grande amor pela esposa retornara revigorado pela paternidade. O
lugar onde se enterrou Iracema veio a se chamar Ceará.
Martim
retornou para sua terra, levando o filho. Quatro anos depois, eles
voltaram para o Ceará, onde Martim implantou a fé cristã. Poti se
tornou cristão e continuou fiel amigo de Martim. Os dois ajudaram o
comandante Jerônimo de Albuquerque a vencer os tupinambás e a
expulsar o branco tapuia. De vez em quando, Martim revia o local
onde fora tão feliz e se doía de saudade. A jandaia permanecia
cantando no coqueiro, ao pé do qual Iracema fora enterrada. Mas a
ave não repetia mais o nome de Iracema. "Tudo passa sobre a
terra”. |