Auto
da barca do inferno
Gil
Vicente
O
primeiro a embarcar é um Fidalgo, que chega acompanhado de um
Pajem, que leva a calda da roupa do Fidalgo e também uma cadeira,
para seu encosto.
O
Diabo mal viu o Fidalgo e já lhe falou para entrar em sua barca,
pois ele iria levar mais almas e mostrar que era bom navegante.
Antes disso, o companheiro do Diabo, começou a preparar a barca
para que as almas dos que viessem, pudessem entrar.
Quando
tudo estava pronto, o Fidalgo dirigiu a palavra ao Diabo,
perguntando para onde aquela barca iria. O Diabo respondeu que iria
para o Inferno, então o Fidalgo resolveu ser sarcástico e falou
que as roupas do Diabo pareciam de uma mulher e que sua barca era
horrível. O Diabo não gostou da provocação e disse que aquela
barca com certeza era ideal para ele, devido a sua impertinência. O
Fidalgo espantado, diz ao Diabo que tem quem reze por ele, mas acaba
recebendo a notícia de que seu pai também havia embarcado rumo ao
Inferno.
O
Fidalgo tenta achar outra barca, que não siga ao Inferno, então
resolve dirigir-se a barca do céu. Ele resolve perguntar ao Anjo,
aonde sua barca iria e se ele poderia embarcar nela, mas é impedido
de entrar, devido a sua tirania, pois o Anjo disse que aquela barca
era muito pequena para ele, não teria espaço para o seu mau caráter.
O
Diabo começa a fazer propaganda de sua barca, dizendo que ela era a
ideal, a melhor. Assim, O Fidalgo desconsolado, resolve embarcar na
barca para o Inferno. Mas antes, o Fidalgo queria tornar a ver sua
amada, pois ele disse que ela se mataria por ele, mas o Diabo falou
que a mulher na qual ele tanto ama, estava apenas enganando-o, que
tudo que ela lhe escrevia era mentira. E assim, o Diabo insistia
cada vez mais para que o Fidalgo esquecesse sua mulher e que
embarcasse logo, pois ainda viria mais gente.
O
Diabo manda o Pajem, que estava junto com o Fidalgo, ir embora, pois
ainda não era sua hora. Logo a seguir, veio um agiota que
questionou ao Diabo, para onde ele iria conduzir aquela barca. O
Diabo querendo conduzí-lo a sua barca, perguntou por que ele tinha
demorado tanto, e o Agiota afirmou que havia sido devido ao dinheiro
que ele queria ganhar, mas que foi por causa dele que ele havia
morrido e que não sobrou nem um pouco para pagar ao barqueiro.
O
Agiota não quis entrar na barca do Diabo, então resolveu
dirigir-se à barca do céu. Chegando até a barca divina, ele
pergunta ao Anjo se ele poderia embarcar, mas o Anjo afirmou que por
ele, o Agiota não entraria em sua barca, por ter roubado muito e
por ser ganancioso. Então, negada a sua entrada na barca divina, o
Agiota acaba entrando na barca do Inferno.
Mais
uma alma se aproximou, desta vez era um Parvo, um homem tolo que
perguntou se aquela barca era a barca dos tolos. O Diabo afirmou que
era a barca dos tolos e que ele deveria entrar, mas o Parvo ficou
reclamando que morreu na hora errada e o Diabo perguntou do que ele
havia morrido, e o Parvo sendo muito sutil respondeu que havia sido
de caganeira.
O
Parvo ao saber aonde aquela barca iria, começou a insultar o Diabo
e foi tentar embarcar na barca divina. O Anjo falou que se ele
quisesse, poderia entrar, pois ele não havia feito nada de mal em
sua vida, mas disse para esperar para ver se tinha mais alguém que
merecia entrar na barca divina.
Vem
um sapateiro com seu avental, carregando algumas fôrmas e chegando
ao batel do inferno, chama o Diabo. Ele fica espantado com a maneira
na qual o sapateiro vem carregado, cheio de pecados e de suas fôrmas.
O
sapateiro tenta enrolar o Diabo, dizendo que ali ele não entraria,
pois ele sempre se confessava, mas o Diabo joga toda a verdade na
sua cara e o manda entrar logo em sua barca. O sapateiro tenta lhe
dizer todas as feitorias que havia feito, na tentativa de conseguir
entrar no batel do céu, mas o Anjo lhe diz que a "carga"
que ele trazia não entraria em sua barca e que o batel do Inferno
era perfeito para ele. Vendo que não conseguiu o que queria, o
sapateiro se dirige à barca do Inferno e ordena que ela saia logo.
Chegou
um Frade, junto de uma moça, carregando em uma mão um pequeno
escudo e uma espada, na outra mão, um capacete debaixo do capuz.
Começou a cantarolar uma música e a dançar.
Ele
falou ao Diabo que era da corte, mas o próprio perguntou-lhe como
ele sabia dançar o Tordião, já que era da corte. O Diabo
perguntou se a moça que ele trazia era dele e se no convento não
censuram tal tipo de coisa. O Frade por sua vez diz que todos no
convento são tão pecadores como ele e aproveitou para perguntar
para onde aquela barca iria. Ao saber para onde iria, ficou
inconformado e tenta entender porque ele teria que ir ao Inferno e não
ao céu, já que era um frade. O Diabo lhe responde que foi devido
ao seu comportamento durante a vida, por ter tido várias mulheres e
por ter sido muito aventureiro. Assim, o Frade desafia o Diabo, mas
este não faz nada e apenas observa o que o Frade faz.
O
Frade resolve puxar a moça para irem ao batel do Céu, mas lá se
encontram com o Parvo, que pergunta se ele havia roubado aquela
espada que ele carregava. O Frade completamente arrasado, finalmente
se convence que seu destino é o inferno, pois até mesmo o Parvo
zombou de sua vida e de seus pecados. Dirigiu-se a barca do Inferno,
resolve embarcar junto com a moça que o acompanhava.
Assim
que o Frade embarcou, veio à alcoviteira Brísida Vaz, chamando o
Diabo, para saber em qual barca ela haveria de entrar. O companheiro
do Diabo lhe disse que ela não entraria na barca sem Joana de Valdês.
Ela
foi relatando o que estava trazendo para a barca e afirmava que iria
para o Paraíso, mas o Diabo dizia que sua barca era o seu lugar,
que ela teria que ficar ali.
Brísida
vai implorar de joelhos ao Anjo, que esse a deixe entrar em sua
barca, pois ela não queria arder no fogo do inferno, dizendo que
tinha o mesmo mérito de um apóstulo para entrar em sua barca. O
Anjo, já sem paciência, mandou-lhe que fosse embora e que não lhe
importunasse mais.
Triste
por não poder ir para o Paraíso, Brísida vai caminhando em direção
ao batel do Inferno e resolve entrar, já que era o único lugar
para onde ela poderia ir.
Logo
após o embarque de Brísida Vaz, veio um Judeu, carregando um bode,
na qual fazia parte dos rituais de sacrifício da religião
hebraica. Chegando ao batel dos danados, chama o marinheiro, que por
acaso era o Diabo; perguntando a quem pertencia aquela barca. O
Diabo questiona se o bode também iria junto com o Judeu, esse por
sua vez afirma que sim, mas o Diabo o impede, pois ele não levava
para o Inferno, os caprinos.
O
Judeu resolve pagar alguns tostões ap Diabo, para que ele permita a
entrada do bode; disse que por meio do Semifará ele seria pago.
Vendo que não consegue, ele xinga o Diabo e roga-lhe várias
pragas, apenas por não fazer a sua vontade.
O
Parvo, para zombar o Judeu, perguntou se ele havia roubado aquela
cabra, e aproveitou para xinga-lo. Afirmou também que ele havia
mijado na igreja de São Gião e que teria comido a carne da panela
do Nosso Senhor. Vendo que o Judeu era uma péssima pessoa, o Diabo
ordenou-lhe logo que entrasse em sua barca, para não perderem tanto
tempo com uma discussão tola.
Depois
que o Judeu embarcou, veio um Corregedor, carregado de feitos, que
quando chegou ao batel do Inferno, com sua vara na mão, chamou o
barqueiro. O barqueiro ao vê-lo, fica feliz, pois esta seria mais
uma alma que ele conduziria para o fogo ardente do Inferno. O
Corregedor era um amante da boa mesa e sua carga era qualificada
como "gentil”, pois tratava-se de processos relativos a
crimes, que era um conteúdo muito agradável para o Diabo. Ele era
ideal para entrar na barca do Inferno, pois durante sua vida, ele
era um juiz corrupto e que aceitava Perdizes como suborno.
O
Diabo começa a falar em latim com o Corregedor, pois era usado pela
Justiça e pela Igreja, além de ser a língua internacional da
cultura. Ele ordena ao seu companheiro que este apronte logo a barca
e que se prepare para remar rumo ao Inferno.
Os
dois começam a discutir em latim, pois o Corregedor por ser achar
superior ao Diabo, pensa que só porque era um juiz prestigiado, não
teria que entrar em sua barca. O Diabo vai perguntando sobre todas
as suas falcatruas, até citando sua mulher no meio, que aceitava
suborno dos judeus, mas o Corregedor garantiu que com isso ele não
estava envolvido, que estes eram os lucros de sua mulher, e não
dele.
Enquanto
o Corregedor estava nesta conversa com o Arrais do Inferno, chegou
um Procurador, carregando vários livros. Resolve falar com o
Corregedor, espantado por encontra-lo aí, questiona para onde ele
iria, mas o Diabo responde pelo Corregedor e diz que iria para o
Inferno, mas que também era bom ele ir entrando logo, para retirar
a água que estava entrando na barca.
O
Corregedor e o Procurador não quiseram entrar na barca, pois eles
tinham fé em Deus e também porque havia outra barca em melhores
condições, que os conduziria para um lugar mais ameno. Quando
chegam ao batel divino, o Anjo e o Parvo zombam de suas ações, que
eles não tinham o direito de entrar ali, pois tudo que eles haviam
feito de ruim, estava sendo pago agora, com a ida de suas almas para
o Inferno. Desistindo de ir para o paraíso, os dois ao entrarem no
batel dos condenados, encontram Brísida Vaz. Ela por sua vez, se
sentiu aliviada por estar ali, pois enquanto estava viva foi muito
castigada pela Justiça.
Veio
um homem que morreu enforcado e ao chegar ao batel dos
mal-aventurados, começou a conversar com o Diabo. Ele tentou
explicar porque ele não iria no batel do Inferno, que ele havia
sido perdoado por Deus ao morrer enforcado, mas isso não passou de
uma mentira, pois ele teria que morrer e arder no fogo do Inferno
devido aos seus erros. Desistindo de tentar fugir de seu futuro, ele
acaba obedecendo às ordens do Diabo para ajudar a empurrar a barca
e a remar, pois o horário de partida estava próximo.
Depois
disso, vieram quatro Cavaleiros cantando, na qual cada um trazia a
Cruz de Cristo, pelo Senhor e também para demonstrar a sua fé,
pois eles haviam lutado em uma Cruzada contra os Mulçumanos, no
norte da África. Absolvidos da culpa e pena, por privilégio dos
que morreram em guerra, foram cantarolando felizes indo em direção
ao batel do Céu.
Ao
passarem na frente do batel do Inferno, cantando, segurando suas
espadas e escudos, o Diabo não resiste e os pergunta porque eles não
pararam para questionar para onde sua barca iria. Convidando-os para
entrar, o Diabo recebe uma resposta não muito agradável de um dos
Cavaleiros, pois esse disse que quem morresse por Jesus Cristo, não
entraria em tal barca.
Tornaram
a prosseguir, cantarolando, em direção à barca da Glória, que
quando eles chegaram nela, o Anjo os recebeu muito bem e disse que
estava à espera deles por muito tempo. Sendo assim, os quatro
Cavaleiros embarcaram e tomaram rumo em direção ao Paraíso, já
que morreram por Deus e porque eram livres de qualquer pecado. |